Diário do hospício e O cemitério dos vivos, por Lima Barreto

“Veio-me, repentinamente, um horror à sociedade e à vida; uma vontade de absoluto aniquilamento, mais do que aquele que a morte traz; um desejo de perecimento total da minha memória na terra; um desespero por ter sonhado e terem me acenado tanta grandeza, e ver agora, de uma hora para outra, sem ter perdido de fato a minha situação, cair tão, tão baixo, que quase me pus a chorar que nem uma criança” | Lima Barreto, O cemitério dos vivos

Pouco se conhece sobre a realidade dos manicômios. A loucura, assim como o crime, uma vez confinados num espaço isolado e distante, se projetam para os bastidores da nossa sociedade. A marginalidade, a alienação, o lixo e as atividades que estão vinculadas à sujeira e ao que é negativo, provocam, em nós, rejeição, além da vontade de nos distanciar daquilo. Não enxergar, esquecer, eliminar. Sente-se asco, nojo e repulsa.

Lima Barreto foi um escritor brasileiro nascido em 1881, no Rio de Janeiro. Morreu aos 41 anos, em 1922. Não o conhecia até poucos meses, apesar de já ouvido falar em seu livro mais famoso: Triste fim de Policarpo Quaresma (1911). Particularmente nos últimos anos de sua vida, Lima enfrentou problemas com o abuso de álcool, o que levou a algumas internações em um asilo de alienados, ou seja, um hospital psiquiátrico.

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Afonso Henriques de Lima Barreto

É a partir dos manuscritos produzidos por Lima Barreto durante a sua segunda internação no Hospital Nacional de Alienados, no Rio de Janeiro, entre 1919 e 1920, que surgem as duas obras aqui reunidas. O antigo Hospício Pedro II, inaugurado em 1852, é considerado o primeiro hospital psiquiátrico do Brasil e, atualmente, o edifício é um campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.

O “Diário do hospício” é o relato de suas impressões, ideias e pensamentos. São observações de situações, de outros pacientes, funcionários e até diretores do hospital. São registros de uma lucidez extraordinária, tendo em vista o contexto em que foram escritas.

“Que dizer da loucura? Mergulhado no meio de quase duas dezenas de loucos, não se tem absolutamente uma impressão geral dela. Há, como em todas as manifestações da natureza, indivíduos, casos individuais, mas não dá ou não se percebe entre eles uma relação de parentesco muito forte. Não há espécies, não há raças de loucos; há loucos só” (p.55).

Nesta edição, publicada em 2017 pela Companhia das letras, essas notas estão distribuídas em dez capítulos e cerca de 80 páginas. A edição não se pretende crítica, mas conta com uma série de notas de rodapé que explica, contextualiza e ajuda o leitor a mergulhar na experiência do autor. Para mim, as notas são fundamentais. A obra é constantemente remetida, pelo autor e pelos editores, ao livro Recordações da Casa dos Mortos, de Dostoiévski, como um outro testemunho de humilhação.

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O manuscrito se inicia quinze dias após a sua internação

Já “O cemitério dos vivos” é uma obra de ficção, no entanto, com caráter fortemente autobiográfico. Em pouco menos de 80 páginas, Lima Barreto segue um estilo que lembra a escrita de Dostoiévski em obras como Notas do subterrâneo e O sonho de um homem ridículo. O protagonista, ora chamado Vicente, ora Torres, ora Flaminio, é uma espécie de Lima Barreto ficcional, amargurado pela morte da esposa – que o próprio escritor não teve -, em conflito com os seus pensamentos e sua estadia no manicômio.

“Mais do que os grandes acontecimentos, na nossa vida, são os mínimos que decidem o nosso destino; e esses pequenos fatos encadeados, aparentemente insignificantes, vieram influir na minha existência, para a satisfação e para o desgosto” (p.132)

De modo geral, tenho brincado que a leitura de Lima Barreto é uma aula sobre a utilização de vírgulas. Não é uma escrita fácil e a estrutura das frases e dos parágrafos seguem lógicas pouco comuns. Entretanto, são exemplos de uma escrita coerente e ponderada.

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A edição se ampara em uma publicação de 1921 da Revista Souza Cruz, com ilustrações do original, ao lado do novo texto

Após essas duas grandes obras, temos um apêndice diversificado. Na seção O hospício segundo Lima Barreto, vemos textos do autor relacionados a sua experiência no manicômio, na forma de contos, crônicas e entrevistas. Destaco o texto Como o “homem”chegou, um exemplo surreal da disciplina desorganizada e do tratamento dos loucos no início do século XX.

Em seguida, temos O hospício segundo outros cronistas, onde encontramos textos de escritores como Machado de Assis, Raul Pompéia e Olavo Bilac. De acordo com os editores, os textos buscam demonstrar e complementar como a instituição mobilizou diversos autores, além de trazer o contraste de sentimentos em relação ao manicômio.

Por fim, referências bibliográficas sobre a história da psiquiatria no Brasil, das obras consultadas e de outras crônicas e artigos contribuem muito para quem gosta e estuda o tema. Para quem, como eu, gosta de ver o local para se ambientar e entender melhor onde tudo se passou, segue uma foto do antigo Hospício Pedro II, situado na Praia Vermelha, no Rio de Janeiro, na época, a capital do país.

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Hospício de D. Pedro II e Escola Militar na Praia Vermelha
Imagem: Leuzinger, Georges

Aos interessados em conhecer melhor o escritor e sua obra, essa reportagem é uma boa dica: Lima Barreto, uma voz que nasceu negra na literatura (Jornal El Pais). Espero que tenham gostado da resenha e garanto que não irão se arrepender de desvendar esse belo relato de vida, que fala tanto de nossa forma de viver em sociedade e aponta os caminhos do desenvolvimento da psiquiatria no Brasil na passagem do século XIX para o século XX, e nos anos que se seguiram.

Ficha técnica

Título: Diário do hospício e O cemitério dos vivos
Autor: Lima Barreto
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 296
Formato: 16 x 23 cm

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Sinopse: Internado por duas vezes em instituições psiquiátricas por delírios alcoólicos, Lima Barreto documentou em Diário do hospício sua passagem pelo Hospício Nacional dos Alienados, no Rio de Janeiro, de maneira lúcida e contundente. No romance inacabado O cemitério dos vivos, o autor transpôs para a chave ficcional a mesma vivência. Os dois textos foram publicados em conjunto postumamente, em 1953 e em 2010, receberam nova e cuidadosa edição organizada por Augusto Massi e Murilo Marcondes de Moura e prefaciada por Alfredo Bosi. Relançada agora pela Companhia das Letras, esta edição conta com notas e imagens inéditas, que oferecem nova contextualização do ambiente manicomial, além de incluir ao final uma nova reportagem de Raymundo Magalhães datada de 1920.