Recordações do Escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto

“Na delegacia, a minha vontade era rir-me de satisfação, de orgulho, de ter sentido por fim que, no mundo, é preciso o emprego da violência, do murro, do soco, para impedir que os maus e os covardes não nos esmaguem de todo”

Como já disse antes, por aqui, Afonso Henriques de Lima Barreto viveu no Rio de Janeiro, à época, capital federal, entre os anos de 1881 e 1922. Em sua curta vida, publicou romances, contos, crônicas e diversos artigos em periódicos, exercendo o que considerava uma literatura engajada, crítica e social.

Comecei a gostar de Lima Barreto, como é conhecido, em 2017, quando o autor foi o homenageado da 15ª Festa Literária Internacional de Paraty, que aconteceu entre 26 e 30 de julho de 2017. Desde então, li algumas obras dele, como Triste fim de Policarpo Quaresma, Diário do hospício e O cemitério dos vivos, e a sua biografia Lima Barreto: Triste Visionário, escrita por Lilia Schwarcz.

Recentemente, em uma visita ao sebo, me deparei com uma edição muito interessante de Recordações do escrivão Isaías Caminha, primeiro livro publicado por Lima Barreto, em 1909, uma espécie de romance auto biográfico com toques de crítica social. A edição é do Círculo do Livro, de 1988, com 195 páginas, letras míudas, e tem um bom posfácio escrito por Zenir Campos Reis.

A história é contada na perspectiva de Isaías, um jovem negro vindo do interior com o objetivo de se tornar “doutor” no Rio de Janeiro, com uma carta de recomendação, mas que enfrenta diversas dificuldades pela sua cor. Não conseguindo iniciar os estudos, nem um emprego, Isaías começa a passar por dificuldades financeiras e quase perde as esperanças de conseguir algo naquela nova cidade. Eventualmente, por meio de um homem que conhecera na chegada ao Rio, acaba conseguindo uma posição em um jornal local, onde se passa boa parte do enredo.

“A imprensa popular de qualquer país, por exemplo: o Matin, o Journal (falo dos que conheço) – não é tão indigente de leitura, de atrativos outros que não o vulgar noticiário, como os jornais do Rio, nos quais quase não existe colaboração de qualquer natureza. Guiados pelas mesmas leis, obedecendo quase a um único critério, todos eles se parecem: e, lido um, estão lidos todos” (p.107).

Um dos primeiros aspectos que me chamou a atenção ao reler Lima Barreto foi a grande diferença entre os estilos, ao comparar a escrita contemporânea e a escrita do início do século XX. Vinha lendo vários livros escritos na última década e, ao me deparar com a escrita detalhada e elaborada do autor, tive que me adaptar.

Não é um livro para se ler tranquilamente no ônibus, na minha opinião (apesar de eu ter lido boa parte). São muitas personalidades citadas, distintos sobrenomes e referências ao que acontecia na época, o que pode dificultar o entendimento. Em alguns trechos, tive que voltar e ver se estava entendendo certo. Exige certa atenção, o que tem faltado pra todos nós, atualmente.

Quando finalizamos a leitura e temos contato com o posfácio de Zenir Campos Reis, alguns elementos ficam mais nítidos. Portanto, acho que é interessante também que o leitor busque conhecer o contexto por trás do livro. Em que sociedade ele foi escrito? Por quem? Com quais motivações? Qual era o espírito da época?

Acho que, quando lemos livros “históricos”, que remetem a um período muito distinto do nosso, precisamos fazer uma espécie de viagem no tempo para nos colocar naquele mundo, por mais que determinadas questões, como o racismo, permaneçam incrustadas em nosso modo de viver.

Lima Barreto fazia uma crítica contundente ao cenário social e político no Brasil pós abolição da escravatura, particularmente quanto à difícil inserção do negro na “sociedade”, o racismo perene e o papel conflituoso da imprensa. E o autor o faz utilizando da própria experiência, trazendo a perspectiva de Isaías, um jovem que escreve suas recordações a respeito desse curioso e difícil período de sua vida.

Se você não conhece Lima Barreto, eu recomendaria iniciar como iniciei: por Diário do hospício e O cemitério dos vivos, e depois por sua biografia Lima Barreto: Triste Visionário. Acho que são formas de entender melhor o autor e conhecer suas motivações, aspirações, inquietações e desejos, assim como seu contexto. Depois, não deixe de ler este aqui. Lima dá aula de como escrever e usa as vírgulas como ninguém.

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