Véspera, de Carla Madeira

“Um professor, de quem pressupomos maturidade e sabedoria, não pode chamar um aluno de burro. Um aluno, de quem esperamos imaturidade e muito a aprender, não deve chamar um professor de cavalo. Mas sendo burros e cavalos parentes, merecem que os tratemos com equidade, mesmo os cavalos se achando superiores aos burros”.

Lembro quando li, há muito tempo atrás, pela primeira vez, o clássico escrito pelo famoso psicanalista Sigmund Freud, “O mal estar na civilização”. Além das inequívocas interpretações trazidas por ele sobre a forma pela qual nos organizamos em sociedade, dentre outras análises dos nossos processos de subjetivação, me lembro que, o que mais chamou à atenção, foi a escrita. Ali estava um texto absolutamente bem escrito.

Claro, lia a tradução para o português do original escrito em alemão (“Das Unbehagen in der Kultur”). Como ainda não aprendi alemão, não li Freud no original. Li vários textos atribuídos a ele, traduzidos por pessoas distintas. Mas, aqui, me lembro especificamente deste livro, edição da qual não me recordo agora. Nele, não só Freud, mas também o tradutor, fizeram um ótimo trabalho. Estava ali, em cerca de 200 páginas, um texto agradável, cativante, como se estivessem conversando com você.

Ao longo da vida, poucos autores me geraram essa impressão. A experiência de ler algo muito bem escrito, finalizado com cuidado, utilizando as palavras com sabedoria. Carla Madeira ingressou recentemente nessa lista, junto com diversos autores que venho comentando por aqui, como Alexandre Coimbra, Ana Quinta, Martha Batalha, entre outros.

Caim e Abel. Abel e Caim. Não esperava encontrar uma história com esses protagonistas. Era coisa bíblica, de muito tempo atrás. Vedina e Veneza. Nomes fortes. Antunes e Custódia. Personagens fortes, daqueles que podemos tocar, de tanto que penetram na nossa imaginação durante a leitura. Vivos, diante de nós.

“Sofria de medo, uma doença dramática em quem tem imaginação. Com os primeiros passos, medo das quinas. Com as brisas, medo da febre. Com o sol, medo da desidratação. Com a comida, medo dos vômitos. Com o amor, medo da perda. Com a liberdade, medo das escolhas” (posição 352)

Véspera, lançado em 2021, é o terceiro livro de Carla Madeira, escritora que nasceu em Belo Horizonte em 1964 e, nos últimos anos, se tornou um fenômeno de vendas. Carla é jornalista e publicitária, foi professora de redação publicitária e foi a segunda escritora mais lida no Brasil em 2021. Aqui, em entrevista para a Revista Piauí, é possível conhecer melhor a autora.

Neste romance, a autora conta a história em dois tempos, alternando passado e “presente” em capítulos muito bem distribuídos, de modo a criar um encadeamento perfeito para o suspense. Basicamente, Véspera conta a história de dois irmãos gêmeos que recebem o nome de Caim e Abel e que, ao longo da vida, convivem com a angústia materna de que a histórica bíblica se repita, em forma de tragédia profetizada.

Conhecemos a infância de Caim e Abel, um pouco da história de seus pais, a adolescência dos gêmeos e os desdobramentos de sua vida adulta. Para quem não se lembrava, assim como eu, da história dos irmãos, narrada no livro de Gênesis, a autora cita por lá, mas aqui vai um spoiler: Caim mata Abel. Filhos de Adão e Eva, este teria sido o primeiro homicídio da humanidade. Daí a preocupação de Custódia, mãe dos gêmeos, de que a história se repita. Quem colocaria esses nomes nos filhos?

Como ocorre em “Tudo é rio”, primeiro livro de Carla, lançado em 2014, e sobre o qual ainda pretendo falar por aqui, observamos, com curiosidade, a autora descrever as origens e manifestações do descontrole humano. Como chegamos ao extremo? “A descida até o lugar onde somos capazes de tudo é, por vezes, um desmoronamento lento misturado à banalidade dos dias. Ou abrupta avalanche” (posição 72). Para a autora, “o gesto brusco não nasce de uma intenção. Irrompe, vaza o limite da alma exausta, é um corpo em derrame” (posição 948).

A história é bastante envolvente e é possível acompanhar o desenvolvimento do suspense que vai sendo criado, diante da narrativa alternada entre o episódio extremo que, aparentemente, ocorre no tempo presente, e o passado, que busca, em migalhas, explicar o que se deu. Ao longo do livro conseguimos entender Caim, assim como compreender Abel. Nos colocamos na pele de Custódia, mãe dos gêmeos, e de Antunes, pai dos rapazes, relegado ao papel de “bêbado insuportável”, condenado por uma piada de mau gosto.

“Não há consolo em dizer que o que nos acontece, nos acontece. Parte fazemos, parte nos fazem. Às vezes, é preciso ir longe para chegar vindo de trás e alcançar a véspera da véspera da véspera do acontecimento. O momento preciso em que tomamos ou somos tomados por uma direção e um belo dia… ou um triste dia, somos o que somos” (posição 105)

Contribuindo com o eixo principal, percebo que Carla se utiliza de alguns parênteses literários para nos convidar a examinar, detidamente, as profundeza daquele experiência que ela quer transmitir. E faz isso muito bem, como ao descrever uma angústia qualquer: “Um paraíso não é suficiente contra determinados infernos. É verdade que algum alívio os banhos demorados trazem, mas logo tudo se resseca, ressente, repuxa. Quando há uma ferida aberta, nem os dias ensolarados melhoram as coisas. Nem o mar. E até a brisa, musa da delicadeza, machuca” (posição 1062). Ou ao exemplificar como se dá a tomada de consciência: “Ontem não estava, hoje está. A consciência é a posse das evidências num gole. Tal qual a cara toma posse do soco” (posição 1333).

“Seria pecado se distrair tanto a ponto de não sofrer mais?” (posição 1430). “As palavras permitem todo tipo de realidade” (posição 2984). Com perguntas e afirmações como essa, Carla nos conduz até o limite de uma história que, logo de início, não parecia que ia acabar bem. Confesso que, diferente de “Tudo é rio”, o final de “Véspera” me frustou um pouco. Soou algo apressado. Ao me aproximar das últimas páginas, aguardava, ansioso, por um desfecho memorável, o clímax, explosão de energia que vinha se acumulando, gradualmente, ao longo dos capítulos. Mas essa resolução não veio. Ou veio, mas de uma forma precipitada.

Penso que quando lemos romances, temos de lidar com as nossas expectativas diante da história que conhecemos, assim como com a nossa imaginação e desejos envolvendo os personagens. Queremos que a história se resolva dessa ou daquela forma. Queremos que fulano consiga se vingar de ciclano. Que tal ou tal injustiça sejam resolvidas. Nos apegamos a um ou outro personagem. Projetamos nossas carências, afetos, infâncias e modos de viver ali, naquelas palavras escritas. Portanto, acho que é normal nos frustarmos diante de alguns caminhos que algumas histórias tomam. Isso caberá a cada leitor avaliar.

No conjunto, creio que “Véspera” é um livro excelente, inesperado e bem construído. É um drama bem trabalhado. É daquelas leituras que nos deixam suspensos, aguardando o próximo momento de pegar o livro e dar sequência naquela narrativa. Ainda não li “A natureza da mordida”, lançado em 2018, mas pretendo. Com base no que li de Carla Madeira, até momento, acredito que temos, entre nós, uma escritora que seguirá ofertando obras absolutamente bem escritas e retratos bem descritos da trágica experiência humana.

“Mas é bom que se diga que há em nós algo que não aceita se conformar. E esperneia, desobedece, teima. Algo que não decanta nem evapora” (posição 1217).

Para conhecer mais sobre a autora:

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2 Respostas para “Véspera, de Carla Madeira

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