“Um garimpeiro, um padre, um médium, um detonador, um guia turístico e eu”, de Paula Gomes

“na dúvida de como as leis da má sorte operam, é melhor evitar todas as possibilidades que se possa imaginar”.

Como bem define uma avaliação no site da Amazon, “Um garimpeiro, um padre, um médium, um detonador, um guia turístico e eu“, é uma divertida “histórica-fofoca fantástica”. Temos aqui um livro curto, com personagens bem construídos e um enredo bastante criativo, a começar por sua premissa: uma cidade que não deixa os seus moradores irem embora.

Publicado em fevereiro de 2023 pela doutora em cinema pela Unicamp e escritora nas horas vagas Paula Gomes, este livro é uma boa indicação para quem busca sair do óbvio. Conheci o livro na newsletter da escritora mineira Aline Valek (sobre a qual já falei por aqui), particularmente no texto “Prêmio Valekers Melhores do Ano 2023″, como ganhador da categoria “melhor livro de ficção”. Confesso que o título, a capa (uma bela ilustração) e a premissa da história me cativaram bastante. Pensei: eu preciso ler isso.

Uma vez adquirido no Kindle, foram necessárias apenas algumas horas para conhecer a história de São Henrique e “de alguns dos seus cidadãos mais ilustres — e de uma jovem que prefere não ser identificada”. Com 85 páginas, Paula divide sua narrativa entre “boas vindas”, cinco histórias diferentes e uma espécie de relato autobiográfico ficcional para encerrar.

Logo de início, somos cativados pela confissão da narradora: “tenho uma falha de caráter irremediável, gosto quando os outros se dão mal. até mesmo amigos e parentes que não meu pai e minha mãe. se em alguns momentos deste relato ficar parecendo que estou feliz com a derrocada dos outros, é porque estou mesmo” (posição 8). Estamos prestes a descobrir a história de algumas pessoas que se deram muito mal. Como diz a narradora: “acho que quando a cidade juntou um bom punhado de apalermados, se afeiçoou, decidiu protegê-los deles mesmos e não deixou ninguém mais ir embora” (posição 58).

Para mim, trata-se de uma leitura bastante única. Não sei se já havia lido algo parecido. Adotando um estilo de escrita sem inícios maiúsculos, Paula constrói, no capítulo de “boas vindas”, um cenário bem sólido que explicaria aquele mistério da cidade que não permite que seus moradores a deixem, com uma combinação agradável de humor irônico e seriedade: “acho que é um medo tão forte que acabou arranjando um jeito de se infiltrar no código genético das pessoas e vai sendo herdado de geração em geração” (posição 93).

Paula Gomes – Reprodução Instagram (https://www.instagram.com/paula.gomesrtv/)

Como li em uma entrevista da autora ao site “Escritor Brasileiro“, trata-se um estilo subordinado à oralidade, com poucas “firulas ou construções frasais rocambolescas”. Me senti como se alguém tivesse me contando uma história em uma daquelas madrugadas insones ou durante um cafezinho. Os cinco personagens (o garimpeiro, o padre, o médium, o detonador e o guia turístico) são muito interessantes e é bastante cômico observar o desenrolar da tragédia pessoal de cada um.

Com boas sacadas, o livro acaba trazendo algumas revelações perspicazes sobre tudo, de uma forma simples, entre um acontecimento e outro. Ao falar sobre a ciência e o conhecimento, temos: “o conhecimento lembra um pouco meu tio valter vindo falar pra mim e meus primos que não podia ficar engolindo água da piscina só depois da gente já ter engolido um monte” (posição 112).

E ainda um dos meus trechos favoritos: “de que outro jeito vão descobrir que existe um problema, se ninguém está morrendo? meu pai ajudou a descobrir a silicose, eu espero não ajudar a ciência com nada” (posição 114).

Ou sobre as amizades: “amizade de muito tempo tem disso. de quando em quando é preciso dar um tempo para tirar um pouco o outro de você” (posição 215). E sobre a igreja: “sempre achei tudo da igreja católica meio melancólico, a impressão é a de que você está sentada dentro do estado de espírito de um deprimido” (posição 252).

Enfim, um trecho do capítulo que encerra o livro, com considerações da narradora, também presa em São Henrique, ao dizer do cachorro, do pai, da mãe e da avó: “ultimamente tenho me sentindo triste em datas festivas, como se eu mais velha estivesse nos observando com saudades desses dias. uma saudades que só será totalmente compreendida quando eles se forem, no entanto, já é possível sentir uma pontinha agora. nós pensamos igual, mas somos fundamentalmente diferentes” (posição 929).

Como vi em outras avaliações, este é um livro muito gostoso de se ler. Antes e depois da leitura, fiquei bastante motivado em retomar a escrita de contos e, quem sabe, arriscar vôos maiores. Escrever sem grandes aspirações, já que fiquei muito preso ao meio acadêmico nos últimos anos. É um pouco daquela sensação: queria tanto escrever algo assim. Creio que sentir isso quando estamos lendo é um ótimo indicativo.

Já baixei o primeiro romance da autora, “Ninguém morre sem ser anunciado“, e pretendo falar sobre ele também. Por fim, leiam. O garimpeiro, o padre, o médium, o detonador, o guia turístico e a narradora te esperam.

2 Respostas para ““Um garimpeiro, um padre, um médium, um detonador, um guia turístico e eu”, de Paula Gomes

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