Sobre desenho. Sim, eu desenho.

Tenho certeza que, quando criança, utilizei o desenho como o principal meio para me expressar. Não vejo dúvida nisso. No início da vida, aprendemos a nos expressar de diversas formas e isso depende de uma série de fatores. No meu caso, algo do meu contexto e das minhas relações familiares, produziu, junto a algum talento ou facilidade para desenhar, a saída para me expressar naquele mundo mais intimista que era o desenho.

É fácil lembrar minha principal inspiração e motivação para desenhar: as revistinhas da Turma da Mônica, de Maurício de Sousa. Acho que aprendi a desenhar com elas, copiando um pouco e inventando o resto. Eram traços mais simples, comparado com outras revistas em quadrinhos como Homem Aranha ou da própria Disney. Talvez tenha sido por isso, além de todos os outros desenhos animados que assistíamos, como Doug ou O Fantástico Mundo de Bobby

Sempre me fascinou a ideia de uma turma. Personagens, cada um com as suas características, vivem pequenas aventuras naquele mundo inventado. Não é à toa que, não sei exatamente com quantos anos (talvez eu tivesse por volta dos oito ou nove, e meu irmão por volta de onze ou doze), criamos, eu e meu irmão, uma turma própria e personagens próprios.

Era a Turma do Juca (não me pergunte a razão do nome), um garoto simpático, possivelmente com seus dez anos, que vivia num bairro parecido com o bairro do Limoeiro (da turma da Mônica) e se divertia com seus amigos. Esse aqui era o Juca, agora em uma versão mais moderna e internacional.

Também tinha o Guto, que era um amigo do Juca, mas que ganhou uma revista própria depois.

Entre um desenho ou outro, começávamos a produzir nossa própria história em quadrinhos. Tudo bastante artesanal, claro. Bem caseiro. Porém, ambicioso. Lembro de passar horas desenhando e colorindo as revistinhas em casa, na mesa da sala ou no quarto que servia de escritório, com muito cuidado e dedicação, até chegar no momento em que fechávamos aquela edição e grampeávamos. Era um exemplar único. Com capa, número e tudo mais.

Nessa época, no início da década de 1990, os computadores e impressoras eram pouco populares e nem existia a internet em nossas vidas e, muito menos, smartphones. Ou seja, era tudo na base do lápis e papel (como os astecas faziam) e não passava pela nossa cabeça fazer algum tipo de cópia dessas revistas. Era aquela ali e pronto.

Pra deixar a coisa “mais profissional”, pensamos que precisava existir uma editora por trás das revistas. Sendo muito originais, criamos a “Editora MR” (de Marcus – meu irmão – e Rodrigo – eu). Além disso, achamos que seria uma boa ideia comercializar as revistas. Essa parte, talvez, se deva à influência do comércio em nossas vidas.

Meu pai e minha mãe, que sempre trabalharam no comércio e nas vendas, devem ter inspirado a decisão de vender as revistas para pessoas próximas e ganhar algum dinheiro com aquilo. Eu mesmo já havia vendido três brigadeiros por dez reais em uma feirinha da escola (no intuito de não deixar sobrar nada, criando uma mega liquidação) e dado orgulho pra eles. História que virou lenda na família.

Nessa toada, amigos, primos e demais familiares eram “convocados” a adquirir e ler os nossos quadrinhos, que eram até bastante populares. O resultado disso, porém, foi que aqueles exemplares únicos desaparecessem com o tempo. É pedir demais que todos tenham o mesmo cuidado e dêem o mesmo valor àquilo que produzimos. Para nós, seria um tesouro da infância, se hoje recuperado. Para quem adquiria, talvez, algo provisório, nada demais. Dessa forma, tenho hoje, comigo, alguns exemplares que restaram.

A Turma do Juca, formada pelo próprio Juca e alguns de seus amigos, como Guto, Ufo, Negrine e Liu Kang (nomes que só crianças poderiam inventar) era divertida. O Guto gostava de coisas relacionadas à morte, fantasmas e etc. Foi uma sugestão de um primo nosso, que até chegou a desenhar umas histórias com a gente. O Ufo, inspirado nos eventos do ET de Varginha, gostava, obviamente, de alienígenas, discos voadores e etc.

Já o Negrine tinha seu nome em homenagem a um jogador do Atlético Mineiro e era o cientista da turma. Uma espécie de Franjinha, no caso da Turma da Mônica. Por fim, Liu Kang era uma singela homenagem ao personagem do jogo de luta Mortal Kombat. Ele era meio oriental e lutava. A gente era meio preconceituoso na época. Ah, os anos 1990!

Eram, de certa nossa forma, nossos amigos, não no sentido triste da coisa. Tínhamos amigos, brincávamos com outras crianças, no mundo real, mas naquele mundo imaginário, tínhamos nossos amigos imaginários também. Tinha até time de futebol, o “Douro”. Na época, era a novidade do momento umas canetas com a cor dourada e prata, o que deve ter motivado o nome. A produção dos quadrinhos variava bastante conforme a oferta de lápis de cor e canetinhas.

Com histórias inspiradas em acontecimentos do dia-a-dia, coisas que escutávamos por aí e até telenovelas, o hábito de desenhar foi se desenvolvendo. Passávamos horas desenhando, sem ver o tempo passar. É, inclusive, uma boa memória da infância que tenho de momentos de conexão com o meu irmão. Estávamos ali, naquele projeto em comum. Depois tivemos outros, mas aquele talvez tenha sido o primeiro.

Meu irmão, que entrava na adolescência, foi abandonando a “carreira” e eu fiquei sozinho, tentando manter a produção e me motivar. Os desenhos iam melhorando, as habilidades de colorir também, e os enredos ficavam um pouco mais complexos. Não sei em que momento parei de desenhar para as revistas. Não me lembro. Só sei que deixei uma revistinha colorida pela metade (essa abaixo), com uma história em aberto (bem simbólico, não?). Era “o fim” da Turma do Juca, que embalou muitos dias de nossa infância.

Creio que segui desenhando, ainda que com menor frequência. O desenho sempre foi um jeito de me mostrar para o mundo e para as pessoas. Era um daqueles talentos que surpreendiam e agradavam, e que podia ser feito em quase qualquer lugar. Utilizava do desenho também para provocar colegas de escola, fazendo caricaturas (algumas positivas, outras não), arrancando algumas risadas (ou não) e ganhando algum prestígio.

Era pouco comum ter “mais de um desenhista” na sala. Até hoje lembro de uma surra que tomei no colégio por conta de uma dessas caricaturas. Eu não era fácil, em alguns momentos.

Lembro de ter feito amizades também por meio do desenho, ainda que iniciasse com certa competição. Sempre me comparei e ainda me comparo, talvez excessivamente, até hoje. Não sei em qual ano da escola, exatamente, tive a oportunidade de dividir o posto de desenhista com um colega, Milton, que também desenhava bem, tinha personagens, ainda que em outro estilo.

Nos unimos, fizemos desenhos juntos, trocamos referências, íamos um para a casa do outro para desenhar. Tive ainda outras conexões, com amigos que queriam aprender a desenhar e viam, em mim, o possível professor.

Mas, o fato é que o desenho vinha perdendo lugar na minha vida. Buscava algo que me trouxesse maior popularidade, algo mais “adulto”. Os hormônios chegavam e, já na adolescência, a preocupação principal era ficar com as meninas, ser mais bonito, menos esquisito. “Desenho é muito infantil”, eu pensava.

Migrei para outro mundo da fantasia e me lembro de ter passado bastante tempo jogando videogame e RPG, seja em jogos de tabuleiro ou cartas. Era, oficialmente, um “nerd”. Talvez não seja necessário dizer que o objetivo de “ficar com as meninas” não se concretizou, nem a tarefa de “ser menos esquisito”. Ser “nerd” não era algo legal e popular no início dos anos 2000. Era só estranho. Enfim, a vida se escreve com linhas tortas, não é mesmo?

Foi então que, nos últimos anos do ensino médio, por volta dos meus dezessete anos, encontrei a música. Ouvir música já era algo bastante presente em nossa casa. Isso não era novidade. Meus pais sempre cantaram (muito bem, por sinal), então era comum ter um ou outro cantarolando nos corredores. E sempre ouviram bastante música, desde Roberto Carlos até Rock Progressivo, com Focus e Pink Floyd.

Além disso, no campo da execução musical, eu e meu irmão havíamos feito aulas de piano quando crianças, e meu irmão vinha tocando violão e cantando desde a adolescência. Ou seja, já tinha uma semente ali. Porém, foi a partir do momento que passou a existir uma bateria acústica em nossa casa, uma vez que meu irmão tinha uma banda e os ensaios aconteciam lá, é que me interessei em me dedicar a aprender algum instrumento de verdade (eu já arranhava o violão, mas sem grandes pretensões).

Desenho que fiz unindo a música (essa é a minha banda cover dos Beatles – 3 Of Us) ao desenho

A partir daquele momento, bandas foram surgindo, amizades musicais foram se formando, e a música se consolidou como a minha faceta artística definitiva. Eu tinha virado “o baterista”. Rodrigo, “o baterista”, não mais “o desenhista”. A música era mais popular, tinha maior entrada nos círculos sociais e ajudava a “conquistar as meninas”. E eu gostava, sempre gostei e sigo gostando, claro.

Aos poucos fui perdendo minha timidez pra tocar e cantar, e fiz shows cada vez maiores, dentro do mundo de um músico amador. Boa parte da minha vida social se desenvolveu em torno de bandas, shows, instrumentos, etc.

E o desenho? Bom, o desenho foi colocado em alguma gaveta e esquecido, por muitos anos. Eu desenhava, de quando em quando, mas nada parecido com a relação que tinha com o desenho quando era criança. Ele se tornou aquele “talento escondido”, que você mostra pra alguém, a pessoa se surpreende, te admira, e você guarda na manga de novo.

Acho que, até o dia de hoje, em que começo a pensar na minha relação com o desenho de uma forma diferente, eu vinha utilizando o desenho como um “cartão de visitas”, algo que faria as pessoas gostarem mais de mim, somente, e algo “bonitinho” que fez parte da minha infância.

Foi somente em 2008, por convivência com a ex-namorada de um amigo, que decidi retomar o desenho e fazer algumas aulas. Era a primeira vez que eu fazia aula de desenho. O resto eu havia aprendido indiretamente com o Maurício de Sousa e demais influências. Me lembro dessa época com carinho. As aulas particulares eram no prédio da Belas Artes, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), no fim da tarde. O clima universitário me fazia bem.

Em um tempo ainda pouco dominado pelos smartphones, passávamos algumas horas observando e desenhando. Usando lápis e canetas diferentes, carvão e nanquim. Fosse a paisagem, fosse um objeto, fosse um autorretrato, a ideia era captar algo e transmitir aquilo no papel, na cartolina, onde fosse. Lembro, até hoje, da imersão que aquilo produzia em mim. Algo que experimento na música e na escrita, às vezes, como um mergulho na atividade, que produz prazer e calma.

As aulas não duraram muito tempo. Talvez alguns meses. Imagino que a demanda do fim da faculdade e a necessidade de começar a trabalhar, tenham me arrancado de lá. Ficou o afeto e a lembrança.

Guardo esses desenhos como relíquias e com muito orgulho. Às vezes, olho para alguns e penso: como eu fiz isso? Depois disso, mais uma vez o desenho voltou pra gaveta onde esteve guardado durante muito tempo. De quando em quando, em alguma ocasião, ele surgia, mas com pouca intensidade.

Hoje, resgatando os momentos em que o desenho foi retomado, observo que, no período de 2011 a 2014, comecei a desenhar naquelas mesas de desenho digitais (uma WACOM – Bamboo Pen and Touch Small), e fiz uma série de desenhos que publiquei em um blog específico (que não lembro mais o nome) e nas redes sociais.

Recuperei o Juca, fiz algumas tiras e cartuns. Cheguei a contribuir com desenhos para uma cartilha desenvolvida no meu trabalho, para casamentos de colegas, para sites de adoção de animais, entre outros. A habilidade sempre era “requisitada” em alguns momentos e eu me disponibilizava de bom grado.

Esse, acima, era o Alfredo, um personagem que criei depois de 2011, para fazer algumas tiras específicas sobre como eu, mesmo jovem, me sinto idoso, em muitas coisas. Abaixo, um resgate do Juca, em uma versão moderna, roubando algumas balas do baleiro, como muitos já fizeram em suas escolas. Talvez não de forma tão cinematográfica.

A mesa ficou parada e foi vendida. O desenho era abandonado, mais uma vez. O último retorno aconteceu em 2021, quando adquiri uma Wacom CTL4100 – Mesa Digitalizadora Intuos Creative, com o intuito de retomar o hábito. Durou alguns meses. Fiz alguns desenhos, tentei retomar o conhecimento que havia adquirido em alguns programas, como o Adobe Illustrator, mas não vingou. Acabei deixando a mesa parada novamente e, recentemente, quase a coloquei à venda, novamente. Não o fiz. E acho que não o fiz porque não queria abandonar, mais uma vez, aquela tentativa de resgatar algo que, na infância e, ao longo da vida, foi tão importante pra mim.

O desenho, de certa forma, sempre me marcou. Era uma das características do meu personagem. Hoje, durante uma reunião de trabalho, fiquei desenhando em um caderno de anotações, uma forma de controlar a ansiedade e de me manter atento ao que estava sendo dito. Tenho certeza que muitas pessoas se identificam.

É interessante como, tantos anos depois, ainda trato o desenho como algo “infantil” ou “que ficou pra trás”. Tenho uma grande cobrança por desempenho, em tudo que faço na vida, e penso que talvez tenha desistido do desenho, muitas vezes, por sentir que fazia aquilo pelo outro, não por mim. E que não era bom o suficiente. Hoje, entre terapias e crises de meia idade, vejo que o desenho pode resgatar, em mim, uma criatividade que restou adormecida por muito tempo e que, por mais que tenha acordado algumas vezes, foi sempre colocada para dormir pela rotina.

O gesto de escrever sobre isso aqui é um sinal disso. Nunca utilizei esse espaço, que já existe há dez anos, para mostrar meus desenhos ou falar sobre isso. É provável que quem me conhece nem saiba que eu sei desenhar. Que já tenha produzido revistas em quadrinhos. Já tive “uma editora”. Que isso sempre esteve aqui comigo, guardado, porém ao alcance de um lápis e de um papel.

Retomo o desenho, hoje, sem compromisso, sem cobrança, sem metas. A meta é não ter meta. É desenhar por prazer, sem cobrança por desempenho. É desenhar por mim, para mim, e compartilhar por aí, porque quando compartilhamos o que nos compõe com o mundo e com as pessoas que gostamos, crescemos, estabelecemos vínculos reais e nos aproximamos. É me aproximar daquele Rodrigo criança, que gostava de criar mundos imaginários, personagens e colorir, criando pequenos universos de brincadeira, apenas para se divertir e se expressar.

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