Não sou uma pessoa muito acostumada a manifestar afetos publicamente. Mesmo nos círculos mais íntimos, entre amigos e familiares, ainda sou bastante reservado e pouco dado a demonstrações físicas e verbais de afeição. Sou bastante protocolar. Talvez possam considerar isso um defeito (eu considero, um pouco, ainda que venha tentando quebrar essa barreira de gelo ao longo dos anos), mas trata-se, inegavelmente, de uma característica da minha personalidade, até então.
Este preâmbulo serviu apenas para introduzir meu silêncio parcial, ao longo do tempo, principalmente nos textos escritos por aqui, sobre uma figura que foi chegando aos pouquinhos e que, hoje, considero um dos principais responsáveis por guiar minha trajetória de estudos e pesquisas. Foi com ele que compartilhei textos, dúvidas, achados, teorias, inquietações e momentos, mais intensamente durante seis ou sete anos, de 2016 a 2022, enquanto completava inimagináveis mestrado e doutorado. Essa figura, que foi e seguirá sendo meu eterno orientador, tem um nome de peso e posso dizer, com a certeza de ser compreendido por muitos, que tive e tenho a honra de conviver com o Professor José Newton Garcia de Araújo.

Para quem não o conhece, falo brevemente de sua trajetória acadêmica, antes de ingressar na outra faceta conhecida, por mim, mais recentemente: a de escritor. José Newton é bacharel e mestre em Filosofia, graduado e doutor em Psicologia, com pós doutorado no Centre de Recherche Sens, Éthique et Société, CNRS / Université Paris-Descartes. Professor aposentado do Departamento de Psicologia da UFMG, foi também professor na graduação e pós graduação em Psicologia da PUC Minas, onde o conheci.
José Newton é daqueles pesquisadores com um currículo lattes vultoso, não apenas em quantidade de produções, mas de qualidade e dedicação, com publicações que o fazem, hoje, uma referência nos estudos sobre saúde mental e trabalho, temporalidade e subjetividade, psicossociologia, para mencionar alguns.
Contudo, minha intenção aqui não é “chover no molhado” quanto à importância de José Newton para a Psicologia e para a ciência, de um modo geral, e para todos nós, colegas, que crescemos junto com ele. Quero falar sobre sua humildade e sobre o seu talento em trazer memórias e histórias tão saborosas em seus outros papéis: escritor, criança, mineiro, idoso, contador de ‘causos’, entre outros. Nascido em Dionísio, no Vale do Rio Doce, em Minas Gerais, José Newton Araújo lançou, recentemente, em 2022, “Retalhos de Fazenda”, pela Editora Quixote+Do.
Como descreve muito bem o jornalista Jurani Garcia, na apresentação do livro, “Neste Retalhos de Fazenda, ele recorre à memória e à imaginação e constrói histórias que envolvem o leitor pelos temas, pelos personagens, pelas sutilezas de forma e conteúdo” (p.6). Em Retalhos, encontramos 33 (trinta e três) contos, de tamanhos, formatos e temas variados, distribuídos em 04 (quatro) partes, inspirados, principalmente, em lembranças da infância, vivida no ambiente interiorano de algumas décadas atrás.
São lembranças de experiências eróticas, lições de vida, aventuras e fantasmas. Os contos trazem também temas marcantes que caracterizam a sociedade brasileira, como a truculência da polícia nas favelas e a rotina de funcionários em um restaurante, ou mesmo diálogos com um padre ou entre um ponto e uma vírgula. É de rir, chorar, se incomodar, se inquietar.
Como diz Hugo Almeida, em resenha sobre o livro, “a maioria dos contos é sem dúvida fatura de escritor maduro, original e rigoroso no texto (elegante, sóbrio, poético), na estrutura, na criação de personagens, no enredo e no ritmo das histórias”. O comentarista acrescenta ainda que “as narrativas de Araújo variam da introspecção ao diálogo, da melancolia à alegria, do terno ao cruel, de um episódio familiar a um caso policial, em texto quase sempre poético na dose precisa”.
Para mim, que conhecia, predominantemente, o papel de professor/orientador de José Newton, conhecer a sua desenvoltura e sua habilidade como escritor de contos tão envolventes foi uma agradável surpresa, ainda que as expectativas já fossem altas quando iniciei a leitura. Aliás, leitura que fiz entre idas e vindas no transporte coletivo, um dos melhores lugares para se ler. Quem lê no ônibus ou no metrô, entende. Era ali, naqueles vinte ou trinta minutos, indo ou vindo do trabalho, que me perdia na imaginação e me transportava para contextos, enredos e personagens tão minuciosamente construídos.
Aliás, voltando aos afetos, é interessante perceber como a leitura é capaz de produzir emoções, assim como outras formas de arte e cultura. Durante a leitura, me conectei com o autor (José Newton, aquele que foi meu orientador e com o qual troquei tantas ideias acadêmicas, envoltas em um ritual de protocolos científicos e preocupações de performance) de uma forma que não havia me conectado antes. Posso estar imaginando coisas, mas o enxerguei como ser humano, criança que foi um dia, jovem e adulto, cheio de inquietações, questões tão comuns a todos nós. Aquele, com o qual conversei outro dia e mostrei um pouco mais.
Observei que, ao longo dos anos, desenvolvemos uma relação fraterna, de respeito e cumplicidade, mas sem grandes manifestações de afetos, em parte, possivelmente, por minha própria dificuldade em correr riscos nesse campo. José Newton sempre disse, em ocasiões diversas, que me admirava. Que eu escrevia bem, que não precisava de tanta orientação, que fazia sempre um bom trabalho. Essa fé que depositou em mim, com certeza, foi fundamental para que eu também confiasse mais em mim e pudesse ter a disciplina de me aventurar e persistir nesse mundo acadêmico. Ouvir isso dele sempre foi um pouco surreal. Hoje, é um pouco mais.
Compartilhamos algumas publicações. Araújo e Monteiro. Monteiro e Araújo. Ano tal. Página tal. Revista tal. É interessante perceber como a escrita constrói essa relação de intimidade e, às vezes, nem nos damos conta disso. Afinal, a escrita não se produz do nada. Ainda que acadêmica, ela é fruto de afetos, energia, desejos, expectativas e movimentos. Estão ali, impressas ou somente em parágrafos digitais, histórias de uma forma de pensar, imortalizadas no diálogo entre dois ou mais humanos inquietos.
Ler “Retalhos de Fazenda” me fez ter esperança de que, um dia, possa escrever um livro, seja um romance, seja uma coletânea de contos, para além do acadêmico, e que possa resgatar a criatividade que encontrei quando comecei a escrever, quase dez anos atrás, e publiquei, ao longo dos anos, algumas histórias curtas. Que possa resgatar a confiança de me valer digno de criar histórias que sejam saborosas, tragam um sorriso, um incômodo ou seja o que for, mas que cative aquele que escolhe, entre tantas leituras, se deter sobre o que eu resolvi falar.
Essa é uma resenha diferente, claro. Um pouco pessoal, meio afetiva, o que é inusitado pra mim. Tenho respeito, amizade e profunda gratidão por tudo que esse mestre (doutor e pós doutor) de cabelos grisalhos, fala suave e tanto conhecimento me ensinou e segue ensinando. Só posso finalizar recomendando que todos conheçam essa coletânea e possam desfrutar de tamanha beleza e simplicidade, trazidas pelo nosso querido Professor José Newton.
Retalhos de Fazenda. 140p. 2022. Link da Editora: https://quixote-do.com.br/produto/retalhos-de-fazenda/
Descrição: “Os acontecimentos extraordinários costumam entrar para os livros de história ou para as manchetes da mídia. Outros, considerados banais, são relegados à insignificância. Alguns pensadores, no entanto, sustentam que os mais corriqueiros eventos do dia a dia podem revelar sua face excepcional. Não foi por acaso que Freud escreveu Sobre a psicopatologia da vida cotidiana, um dos textos fundadores da psicanálise. Tudo depende do jeito de olhar o trivial. Se a literatura nos oferece narrativas épicas, ela também pode nos surpreender com o voo de uma joaninha, o almoço de um morador de rua, o par de tênis pendurado no fio elétrico. Tudo depende do jeito de olhar? Sim, mas também do jeito de contar. É isso que o leitor poderá conferir nos contos reunidos neste livro”.
Outras resenhas sobre o livro:
- Doutor em Psicologia estreia na ficção sem tom acadêmico
- A vida de gente ‘invisível’ inspira livro de contos de José Newton Araújo
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