Responda rápido: você é uma pessoa livre? (é melhor pensar duas vezes)

“Todo poder é um “poder no palco”, todo poder se exprime em posturas majestosas, roupas suntuosas, festas, opulência, extravagância; numa palavra, sua própria representação, visando surpreender as massas” 

Eugène Enriquez

Recentemente, li dois artigos formidáveis. O primeiro se chama “Qualidade de vida no trabalho: controle e escondimento do mal-estar do trabalhador” de José Newton Garcia Araújo, e o segundo, referência utilizada no primeiro, de autoria de Eugène Enriquez, intitula-se “O indivíduo preso na armadilha da estrutura estratégica”.

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Ambos me despertaram reflexões sobre a liberdade e sobre as aparências. Faço aqui apenas uma das muitas possíveis ligações entre os dois temas, longe de conseguir exprimir o conteúdo essencial dos dois textos.

Somos livres de fato?

Desde que o mundo é mundo fala-se em liberdade, em ser livre disso, daquilo ou para isso, para aquilo. Irvin D. Yalom coloca a liberdade como uma das principais questões existenciais e como uma fonte de angústia do ser humano. Distinguindo a liberdade entre liberdade DE e liberdade PARA, Cabral (2014) afirma que:

“Sabemos que não somos completamente livres de determinantes biológicos, condicionamentos sociais e culturais, ou mesmo de contingências político-econômicas. Seria ingênuo considerarmo-nos totalmente livres disso tudo. Entretanto […] , somos livres para fazer frente a isso tudo, isto é, estamos condenados a escolher a maneira como lidaremos com todos esses aspectos.”

Nossa liberdade é sim bastante relativa. Se você se acha livre, pense duas vezes.

Utilizo a seguir alguns exemplos de empresa porque acredito que é onde geralmente vivemos mais concretamente a experiência de estarmos em um sistema de regras, de relações com autoridade e produção.

por JEAN JULLIEN

Ilustração: Jean Jullien

No que tange as relações de trabalho, em discussão sobre o capitalismo, práticas de recursos humanos e os conhecidos programas de QVT – Qualidade de Vida no Trabalho, Araújo (2010) questiona os reais objetivos de algumas práticas de humanização do trabalho nas empresas e afirma que:

“As relações entre capital e trabalho são fundadas num conflito inconciliável. Por isso, é inerente ao papel dos gestores do capital impedir a autonomia e a emancipação do trabalhador. Caso contrário, estaríamos falando de outro modo de produção, de outro sistema de trocas, do qual a alienação ou a mais-valia seriam excluídas”.

O eu nas instituições

Mas, o que isso tem a ver com liberdade? Ora, não estamos inseridos em instituições, em organizações como a administração pública ou empresas? E se não trabalhamos em empresas, estamos possivelmente nos relacionando com pessoas que trabalham.

Nossa liberdade de agir, executada através de atitudes, é determinada por nossas vontades e desejos, os quais são estabelecidos mediante ideais e traços valorizados por nossa comunidade. Sucesso aqui é diferente de sucesso em outro lugar, bom ou ruim, certo ou errado, etc.

Nossa liberdade é parcial, assim como deve ser para convivermos em sociedade, no entanto, nem sempre temos consciência disso.

Encontramos mais um exemplo nas práticas de recursos humanos muito adotadas em empresas. Visando o trabalho em equipe, a melhoria da qualidade de vida no trabalho e demais atitudes participativas dos funcionários, elas devem ser questionadas em seus reais objetivos.

working-hard

Muitas vezes determinadas estruturas empresariais podem alienar os funcionários, restringir a liberdade e definir modos de pensar, amenizando tais efeitos por meio de políticas de gestão de pessoas motivadoras. E assim pode acontecer com a sociedade de modo geral.

De acordo com Araújo (2010),

“não se trata aqui de carimbar esses gestores como vilões, de demonizá-los, mas de termos claro que, antes deles, os processos de produção, a quem eles servem, é que são estruturalmente lesivos aos trabalhadores. Assim, não seria estranho afirmar que os acidentes, mortes e todas as formas de adoecimento no trabalho são ‘programadas’ ou ‘projetadas’. Exagero?”.

Ao discutir a estrutura estratégica, estrutura empresarial muito comum e divulgada nos dias hoje, Enriquez (1997) a define como uma empresa que exige do funcionário envolvimento integral, doação de todas as suas capacidades, identificação com os ideais da organização e valoriza a constante adaptação, estimulando tanto o individualismo como o trabalho em equipe. É basicamente o que se tem exigido dos profissionais atualmente.

Ao criticar esse tipo de gestão, Enriquez (1997) afirma que

“de fato, esse tipo de estrutura persegue objetivos inconciliáveis […]. Exigir a integração de cada um à organização e à idealização dela mesma; demandar um espírito individualista e um forte espírito de equipe…”.

Objetivos inconciliáveis?

Não vivemos afinal em uma sociedade que valoriza a iniciativa individual e ao mesmo tempo prega a cooperação? Não devemos nos tornar profissionais completos e autônomos, mas ao mesmo tempo reconhecer a importância da equipe e não ser auto suficiente?

Como cita Enriquez (1997), Jacob Levy Moreno no seu livro “Quem sobreviverá?” já indicava em 1933 que “o problema da sobrevivência individual e coletiva seria o grande problema de nosso tempo”.

Assim como os demais padrões de sucesso e de uma vida feliz na sociedade, a valorização da cooperação entre as pessoas e o pregação do individualismo indicam valores minimamente confusos.

Se esse tipo de condicionamento da liberdade ocorre em empresas, porque não considerá-la como algo existente em toda a sociedade?

Vivemos em mundo de idealização e aparências.

O que nos parece o “sucesso”? Que aparência tem o indivíduo livre? Bem sucedido? O que é valorizado hoje em dia? Liberdade ou submissão? Poder ou humildade? Aparência ou modéstia?

De acordo com Enriquez (1997), dizendo sobre nossas figuras de autoridade,

“os tempos não são mais do chefe que comanda, mas daquele que seduz, persuade, exala charme, anima e sabe jogar com as aparências. Nossa sociedade é um lugar onde a aparência triunfa”.

Se a aparência triunfa, existe um sucesso aparente, um ideal do “bem sucedido”. Mas não são nossas atitudes pautadas em objetivos e ideais que possuímos? E não são esses construídos e influenciados pelo nosso meio e pela nossa sociedade?

Discuto a liberdade para questionarmos nossa real noção de “ser livre” e entender que ideais muitas vezes perseguidos por nós podem se tratar de meras aparências.

Referências bibliográficas

ENRIQUEZ, Eugène. O indivíduo preso na armadilha da estrutura estratégica. RAE – Revista de Administração de Empresas, v. 37, n. 1, p. 18-29, 1997.

CABRAL, Ricardo Dantas. Psicoterapia Existencial: a sistematização de Irvin D. Yalom

ARAÚJO, José Newton Garcia. Qualidade de vida no trabalho: controle e escondimento do mal-estar do trabalhador in Trab. Educ. Saúde, Rio de Janeiro, v. 7 n. 3, p. 573-585, nov.2009/fev.2010.

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