Quem sabe um dia um larari larara?

São onze e meia da manhã. Vou ao banheiro, troco de blusa, bloqueio o computador e vou em direção ao restaurante de quase sempre. Vazio. Na linguagem popular, diria que, cá estou, almoçando com as galinhas. Prato servido. Bom dia, balança, bom apetite, obrigado. É fácil escolher uma das mesas de dois lugares. Próxima à janela, de preferência. Gosto de ver o movimento do centro da cidade. Por cerca de uma hora, a confusão e a profusão de sons, ideias e imagens estarão fora da minha cabeça, materializadas na síntese de ruas que homenageiam povos originários do Brasil e estados da federação. Prato servido. Tupis, Tamoios, Bahia e Espírito Santo.

Antes de comer, lembro: preciso cadastrar no meu diário de nutrição (sim, isso começou há alguns dias). Frango grelhado, arroz integral, feijão, legumes cozidos e alface. Confirmar. Celular de lado, virado pra baixo. Olho para o prato e vem à minha cabeça: “Ao Senhor agradecemos o alimento que teremos”. Amém. A frase vem acompanhada da imagem do meu avô Dagoberto, sentado à mesa, na cadeira da ponta, em um antigo apartamento na região do Horto. Pronto para o almoço em um dia qualquer da semana.

Camisa social pra dentro, possivelmente branca. Calça social, possivelmente cinza escuro. Bigode e cabelos quase inteiramente brancos. Após o almoço, entre resmungos musicais larari larara, a soneca no sofá do quarto da tevê, que dá janela para a rua. No sofá, a pescaria, aquela briga que travamos com o sono em momentos inoportunos. Na televisão, um jornal regional, o globo esporte e o jornal hoje. As unhas dos homens são roídas em quase perfeita sincronia e as pernas se cruzam de um jeito parecido.

Essa memória tem surgido nos últimos dias, justamente quando estou prestes a almoçar. Os cabelos prateados do “seu dagô” me levam a uma visita que fiz há algumas semanas a uma tia querida. Uma visita afetiva e cheia de sentido. Ouvimos Carinhoso, música de mil novecentos e dezessete. Na vitrola. Ah, se tu soubesses / Como sou tão carinhoso / E o muito, muito que te quero / E como é sincero o meu amor / Eu sei que tu não fugirias mais de mim. Nas paredes da casa, fotos e pinturas. Olhar as fotos ajuda a resgatar a memória e a identidade. Lembrar de quem somos e de onde viemos. É preciso cuidar. Da noite pro dia, a memória pode escapar.

Consigo entender a ânsia de alguns em escarafunchar sua própria árvore genealógica. São os ecos de antigas palavras. Vejo fotos da minha infância e juventude, e de pessoas que não vejo há muito tempo ou que não cheguei a conhecer a ponto de me lembrar. As pinturas são da minha avó Silvia. Uma, duas, três paisagens rurais. Bela escolha de cores, traços finos, boa profundidade e equilíbrio. Um nome discreto na pedra. Silvia, setenta e seis, setenta e sete, oitenta e oito. Rodrigo tinha apenas três, neste. Meu pai quando pequeno era a minha cara, mas talvez fosse mais a cara do meu irmão. Sou mais a cara da minha mãe, não sei. Da sobrinha, talvez?

Essa mistura de traços se confunde entre gerações. Pernas, braços, dedos, unhas, joelhos e bocas se copiam. Minha sobrinha canta sozinha enquanto corre e brinca pra lá e pra cá. Quem sabe um dia um larari larara? Nem somos tão originais assim.

Ao Senhor agradecemos o alimento que teremos. Que assim seja.

Paisagem rural, montanhas ou capela. Silvia, oitenta e oito.

🧠 Talvez você se interesse por esses textos que ficaram na minha cabeça:

A incrível arte de deixar o passado pra trás – A vida possível, da Raisa Monteiro Capela

Sentimentos difíceis: decifre-me e devoro-te? – anacronista, da Ana Rüsche

#93 – procuram-se lágrimas – tudo bom e nada presta, do pedro rabello

“Porque, pensando bem, seu problema era pensar demais. Pensar tinha se tornado um vício, que o mantinha num permanente estado de dúvida sobre tudo, impedindo-o de agir em qualquer esfera”

Esse trecho é do José Falero, em Os supridores, livro incrível escolhido para o primeiro encontro do Clube de Leitura organizado por Raisa Monteiro Capela , Ludmila Primo , Bruna Fonseca e Juliana Alvim .

Obrigado pela companhia. Até a próxima!


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