“É sobre a história que conseguimos narrar e organizar a respeito do que aconteceu e acontece com cada um de nós” (p.93)
Sou psicólogo. Não sou psicanalista. Até tenho amigos que são (é uma piada). E pra ser um, não precisa ser o outro. E vice-versa. É sempre bom elucidar.
Logo que me formei, me especializei em Psicodrama e foi por meio dessa abordagem que realizei minhas primeiras empreitadas no mundo clínico e das atividades em grupo. Depois, acabei me direcionando para estudar e atuar com saúde mental e trabalho, o que faço ainda hoje. Se fosse necessário me dar um rótulo, atualmente, seria o de psicólogo do trabalho.
Contudo, quem se formou e trabalha com psicologia sabe, possivelmente, que dificilmente conseguimos nos limitar a conhecer apenas uma abordagem teórica. Afinal, no meu entendimento, todo o conhecimento produzido na “área psi” é importante, ainda que tenhamos que ter algum cuidado para não transformar a nossa atuação em uma salada de frutas, misturando alhos com bugalhos, como se dizia antigamente.
Neste semestre, atuando como orientador de trabalhos de conclusão de curso, tive a oportunidade de conhecer o podcast “Vibes em análise” (@floatvibes), através da indicação de um aluno. O programa é produzido pelos psicanalistas André Alves e Lucas Liedke. Ouvi dois episódios, até o momento, e achei a proposta bem interessante.
O curioso é que, por coincidência, o livro de um dos pesquisadores – do Lucas Liedke – já estava na minha lista de leitura há algum tempo, fruto de recomendações do tipo “talvez você se interesse”. E eu jurava se tratar de um livro com relatos de sessões e casos clínicos. Não é. É melhor.
“Entre sessões: psicanálise para além do divã” (Paidós, 2023) é um livro publicado por Lucas Liedke, psicanalista, pesquisador e cofundador do floatvibes – Instituto de Estudos Culturais, Pesquisa Comportamental e Produção de Conteúdo. Nas palavras do autor, o livro foi uma tentativa de fazer uma narrativa que retomasse a sua relação pessoal e profissional com a psicanálise, buscando divagar “para além da teoria e para além da prática, se é que isso é possível” (p.16).
Estruturado em cinco capítulos, o livro tem uma escrita muito agradável e de fácil entendimento. O autor traz alguns dos principais pressupostos da psicanálise, mas o faz de uma forma tranquila e sempre buscando se fazer entender, inclusive com exemplos concretos e temas do que podemos chamar de sociedade contemporânea.
Sempre tive uma queda pela psicanálise, assim como imagino ser o caso de muitos estudantes ou profissionais de psicologia já formados. Cá entre nós, o Freud era demais. Fiz alguns anos de análise, quando comecei a fazer psicoterapia.
Ao longo do curso de graduação – pelo menos, no que eu fiz e na época que fiz – era muito comum estudarmos psicanálise como uma espécie de “pedra fundamental” de tudo o que sabemos hoje.
“O não saber é a premissa sob a qual a psicanálise se organiza, mesmo que estejamos diante da investigação de um grandioso objeto de estudo que representa o próprio saber: a mente humana” (p.31).
A tal “cura pela fala”, o “inconsciente”, “sintoma”, “ato falho”, “o mal estar na civilização”, “pulsão de cá” e “pulsão de lá”, tudo isso formou o nosso “caráter profissional”. E mais, muito disso faz parte, hoje, de uma espécie de senso comum acerca do “saber psicológico“, assim como a imagem clássica do divã.
Nesse ponto, Lucas faz um excelente trabalho ao “colocar as coisas em seu devido lugar” e elaborar críticas pertinentes ao modo como comunicamos e fazemos ciência. É um livro sobre psicanálise, mas também não é.
“Somos as palavras que usamos para falar e pensar. Somos os enunciados que repetimos há não sei quantos anos sobre os mais variados assuntos e pessoas. Como esperamos mudar de vida se não mudamos as palavras que usamos para falar de nós mesmos e das coisas que acontecem com a gente?” (p.155).
Sobre ser a “pedra fundamental”, ainda que não seja tanto assim (ou será?), é inegável reconhecer a importância dos estudos de Freud, Winnicott, Melanie Klein, Lacan e outros para o nosso entendimento da subjetividade e da sociedade.
Falando de alguém que, hoje em dia, não tem contato diário e nem estuda psicanálise, “Entre sessões” faz um belo trabalho ao apresentar e discutir, ao mesmo tempo, a psicanálise e os seus dilemas.
“É como se a psicanálise fosse, ela própria, uma analogia para a mente humana: imprecisa, contraditória, aberta à subjetividade e muitas camadas de interpretação” (p.43).
Mais do que apresentar o livro, fiz questão de escrever esse breve comentário para trazer um pouco do que o livro gerou em mim. Durante a leitura, fiquei com vontade de estudar psicanálise novamente. Tive vontade, quem sabe, de tentar entender Lacan.
É interessante como observo, em algumas abordagens mais contemporâneas da Psicologia, uma certa ambição de se alcançar a “consciência plena”. Um estado de total atenção e saber sobre meus atos, pensamentos e emoções.
Talvez, ler sobre o inconsciente e lembrar que “o Eu não é senhor na própria casa”, tenha aliviado, em mim, o peso de buscar “entender tudo”. Tal qual o “mentaloide” citado por Lucas, “um sujeito marcado por um excesso de produção e articulação mental”, um vilão do processo analítico.
Recomendo bastante a leitura, seja você um profissional da área ou mesmo um leitor curioso pela alma humana.
Deixo o link para um bate papo de lançamento do livro e a ficha técnica. Abraços!
- Entre sessões: Psicanálise para além do divã
- Lucas Liedke
- Editora: Paidós
- Ano: 2023
- 208 páginas
- Resumo: Até onde a psicanálise pode ir na nossa vida e na cultura, para além das quatro paredes de um consultório? Em Entre sessões, o psicanalista e pesquisador Lucas Liedke escreveu um livro que trata, principalmente, da potência da psicanálise como instrumento de conhecimento e também desconhecimento. O psicanalista e pesquisador Lucas Liedke elaborou Entre sessões: psicanálise para além do divã em uma busca para expandir o lugar e a função da psicanálise enquanto um exercício diário da vida cotidiana e como recurso teórico para reflexões pertinentes sobre o mundo e o tempo em que vivemos. Com base em premissas teóricas, experiência clínica e novos estudos comportamentais, o livro aborda o impacto de temas como memes, sonhos, internet, ansiedade e os efeitos da proliferação de conteúdos sobre saúde mental em um contexto de rede. Em uma escrita prazerosa e provocativa, o autor apresenta uma obra para analistas, analisandos, estudantes e entusiastas, incentivando os leitores a se escutarem e a se reconhecerem na sua própria relação de descoberta com o universo da psicanálise.
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