“A felicidade é para depois de muito custo. Mas que custe é inevitável. É uma obrigação por sermos vulneráveis”.
Narrado por Paulinho, conhecido como Felicíssimo, “Deus na escuridão” é o último lançamento do escritor português Valter Hugo Mãe, nome artístico do escritor e editor português Valter Hugo Lemos, nascido em 25 de setembro de 1971, autor de vários livros de poesia, contos, romances e literatura infantil. Lançado em Portugal em janeiro de 2024, o livro teve sua edição brasileira lançada em abril do mesmo ano, pela Editora Biblioteca Azul.
Irmão mais velho de Pouquinho, Felicíssimo tem devoção por seu irmão mais novo, que “nasceu sem as origens”, “inteirinho um menino, mas vinha mordido entre as pernas.” Era uma criança “abreviada” e “infortunada”. Após o seu nascimento, que trouxe assombro aos adultos, Felicíssimo, em uma sua ingenuidade infantil, promete cuidar e protegê-lo de tudo, tratando-o como uma criatura divina, um Deus que veio viver entre nós.
Como observamos em algumas resenhas e apresentações da obra, estamos falando de um livro que fala do amor fraterno e do amor de mãe, frequentemente comparados ao amor de Deus pelos seres humanos. Um amor que fica na escuridão, ali, sempre presente. Porém, o livro faz isso de uma forma diferente, abordando a história em tempos distintos, seja logo após o nascimento de Pouquinho, o irmão divino de Felicíssimo, seja duas décadas depois, com Pouquinho já independente e vivendo sua juventude. Tudo isso, na perspectiva de Paulinho, o Felicíssimo.
Pouquinho levou muitos dias a abrir os olhos. Não era normal. Ficou mais de uma semana com eles fechados. Pensámos até que ele só veria para dentro. Talvez cegasse. Mas não era verdade. Certamente ficou demorado a ver para dentro, sim, antes da contingência de ver para fora e cegar para o interior, como acontece com todas as pessoas, uma a uma
O romance, que tem pouco mais de 230 páginas, se passa em um local peculiar, a Ilha da Madeira, um território de origem vulcânica, situado no oceano atlântico, a sudoeste da costa portuguesa, a qual, inclusive, fiquei com muita vontade de conhecer. Com isso, Valter Hugo traz, para o texto, como afirma matéria publicada aqui, “uso de expressões, construções frásicas típicas e locais da própria ilha da Madeira. Formas de linguajar que fogem ao padrão ou constituem um desvio da normalidade de falar, mas que existem por si só e abanam o que se constituiu como cânone continental”.
Como ressalta Miguel Pestana, em sua resenha sobre o livro, o texto pode soar familiar aos portugueses e moradores da lha da Madeira, contudo, “para o leitor não madeirense, principalmente para o que lerá este livro traduzido (alguns livros do autor encontram-se publicados em vários países), um glossário serviria de auxílio para uma boa interpretação”. É o nosso caso. Na versão brasileira, várias expressões foram mantidas, o que dificulta um pouco o entendimento em alguns trechos, mas nada que impacte a leitura, de modo geral. Afinal, trata-se de uma escrita também poética, que brinca com as palavras e nomes dos personagens.
Isso já era algo encontrado em outros livros do autor, como alguns que já comentei por aqui, mas neste a peculiaridade se destaca. Reconheço que é um aspecto do próprio livro, fazer com que a linguagem represente, também, a forma de ser, pensar e se expressar daqueles personagens. Como observa Miguel, isso “revela um escritor que fez um trabalho de pesquisa exaustivo (sabemos que in loco), pois são verosímeis todos os topónimos referidos na narrativa. Ser e viver enquanto ilhéu, com todos os prós e contras, está bem retratado nesta obra tecida com engenho e conhecimento no domínio da língua portuguesa e as suas variações”.
Entretanto, isso pode tornar a leitura menos fluida, exigindo do leitor uma imersão que demanda maior empenho, como ocorreu no caso de As doenças do Brasil, livro anterior do autor, que adquiri, comecei a ler, mas interrompi, porque procurava algo menos “trabalhoso” no momento (sim, isso acontece, e tá tudo bem). Portanto, seria interessante que, em próximas edições, uma espécie de glossário ou notas do autor fossem inseridos, para auxiliar um leitor desavisado. Ou não, quem sou eu pra dizer.
Paulinho, não se balançam as pernas assim. Eu procurava aquietar-me, igual a parar o próprio coração de bater. Minha natureza era a do movimento. Quase sempre me movia antes de saber para onde ou por que razão. A cabeça nunca era mais rápida do que os nervos no corpo. A cabeça esperava razões e explicações, o corpo seguia a vertigem. Era um animal ativado pela simples evidência de pulsar
Como li em outras resenhas, o trecho que serve de passagem no livro, entre um tempo e outro, é belíssimo e pode ser considerado uma das preciosidades da obra, na minha opinião. Valter Hugo transmite com muita delicadeza a ideia de comparar o amor materno ao amor divino, e o faz de um modo que quebra, de certa forma, o ritmo da história contada por Felicíssimo. É um trecho que enriquece a narrativa.
A história de Felicíssimo e Pouquinho é muito bonita e os elementos trazidos pelo autor em torno da beleza do amor fraterno e dos sacrifícios do irmão mais velho é muito emocionante. Por alguns instantes, me transportei para este universo tão diferente e, ao mesmo tempo, familiar, por tratar de algo tão universal como o amor fraterno e o amor materno. De acordo com a Editora, “A obra faz parte da tetralogia Irmãos, Ilhas e Ausências, que inclui A desumanização (2013), Homens imprudentemente poéticos (2015) e As doenças do Brasil (2021)”, romances que se situam em ilhas.
Talvez ali houvesse compreendido que o sofrimento não nos impediria de também estarmos satisfeitos. Porque não. De modo nenhum. A felicidade é para depois de muito custo. Mas que custe é inevitável. É uma obrigação por sermos vulneráveis.
Valter Hugo Mãe é um escritor contemporâneo de destaque e merece todo o reconhecimento. Para quem ainda não conhece, sempre indico que inicie por O filho de mil homens (Biblioteca Azul, 2016) e a máquina de fazer espanhóis (Biblioteca Azul, 2016), livros excepcionais, sobre os quais comentei aqui no blog. Por fim, selecionei alguns trechos que me marcaram. Até a próxima!
“O seu silêncio era uma constante e alguma impressão de culpa. Eu sentia que se culpava, ou queria que dali viesse alguém a quem pudesse pedir algo, talvez perdão. O medo sempre pergunta sobre a culpa, porque a coragem constrói a partir da convicção de se merecer, ou não, vencer o obstáculo”.
“Quando não se acredita com o coração, é importante acreditar com os braços, com os pulmões ou com o estômago. A vida desafia por todo o lado, e a resistência tem de ir buscar sua ciência a qualquer pulsação, qualquer fluxo, qualquer golfada de ar. Até para amar. Maioria do amor é com os braços. Maioria do amor é feito com os braços. Com a força das pernas, com a cabeça obstinada procurando soluções para proteger”.
“Inclinava-me para dentro da cisterna, deitava a cara à água, e espiava com desconfiança meu olhar, enquanto bebia. As mãos em concha para funcionar de beber. Por anos, muitos anos, não vi quem era senão assim. Fugindo de onde houvesse espelhos. Recusando a necessidade de saber dessa máscara inevitável que é nosso rosto, criada à revela de meu desejo, criada sem corte de minha faca”.
“E eu sonhei que deitaria os passos pelo calhau e depois pela membrana tão horizontal da onda que chega à praia, e seguiria erecto mar fora, sem sequer olhar para trás. Sem despedidas, porque levaria mil anos de tristeza e precisaria apenas de partir. Quando a tristeza é sem fim, certamente só a lonjura pode almejar a ilusão de uma trégua”.
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