O cenário é Porto Alegre e nossa história se passa na intrigante transição entre a região central e a periferia. Direto dos corredores e almoxarifado de um supermercado como muitos que conhecemos, somos levados ao universo de Pedro e Marques, dois repositores (supridores) de mercadoria que, diante de uma cruel realidade de uma vida apenas sobrevivida, marcada por pobreza e desumanização, decidem virar o jogo. A solução? Entrar para o tráfico de maconha, uma excelente oportunidade de mercado.
Enquanto se arrastava de má vontade para o ponto de ônibus, subindo a Nova São Carlos, Pedro pensou consigo mesmo, mais uma vez, que tinha que dar um jeito de ficar rico. Essa ideia andava atormentando-o muito ultimamente, e ele já estava achando que jamais ficaria em paz se não realizasse o sonho. Seus bisavós tinham sido pobres a vida inteira, seus avós tinham sido pobres a vida inteira, seus pais tinham sido pobres a vida inteira: até onde iria isso? (p.23)
É a partir desse nó social que José Falero, escritor nascido em 1987, em Porto Alegre, desenvolve “Os supridores”, o seu romance de estreia.
O livro, nomeado por algumas críticas como literatura marginal, cumpre muito bem o papel de trazer um ponto de vista totalmente inusitado ao leitor. Afinal, Falero surge “de um lugar não tradicional de escrita”, como indicam Coelho e Sparemberger1. Para os autores, “a ficção periférica passa a ocupar um espaço considerável dentro do sistema literário nacional, trazendo novas vozes que tratam destes temas necessários por meio de uma visão privilegiada” (p.2).
É isso que encontramos neste livro. Afinal, não se trata de criar uma literatura moralizante, que mostra, ao fim, que o crime não compensa ou algo do tipo. Pelo contrário, Falero traz “uma das possibilidades de vida da população excluída, apontando como, muitas vezes, o crime entra na vida dos cidadãos e como ele é perpetuado dentro da sociedade” (Coelho & Sparemberger, 2021).
Nessa excelente entrevista ao Jornal do Comércio2, o autor conta um pouco de sua trajetória e do seu processo de escrita, marcado por certa obsessão e cuidado com cada letra, frase e página, além de reforçar a importância da leitura no seu desenvolvimento pessoal.

Pessoalmente, não conhecia nem o romance, nem o autor. O livro faz parte da iniciativa das escritoras Raisa Monteiro Capela, Ludmila Primo, Bruna Fonseca e Juliana Alvim de criar um clube do livro, o Cubo Literário.

“Os supridores” é o livro que marca o início do grupo que se encontra amanhã (25/10), pela primeira vez. Se você está lendo isso no futuro, provavelmente já nos encontramos e estamos felizes e satisfeitos com o resultado.
Particularmente, me surpreendi bastante com a leitura. José Falero escreve muito bem, de forma organizada e, ao mesmo tempo, coloquial e distraída. A linguagem não é forçada, nem se torna uma caricatura, já que dá mais realidade e concretude aos personagens.
“Merda de vida! É melhor morrer do que ter uma vida que nem a minha. Eu, na real, nem posso dizer que eu vivo; eu sobrevivo. Só o que eu faço é suar e suar pra me manter respirando, e mais nada. Uma puta duma usina trabalhando a todo vapor só pra acender uma bosta duma lâmpada! É, eu preciso ficar rico, custe o que custar. Preciso dar um jeito de experimentar as coisa que faz a existência valer a pena, e não vai ser trabalhando que eu vou conseguir isso.” (p.24)
As conclusões de Pedro e Marques, muitas vezes, trazem uma realidade bastante incômoda. Afinal, a crítica desenvolvida por meio dos discursos inspirados e marxistas de Pedro, faz com que a história tenha um importante pano de fundo político e social.
O que podia fazer toda a diferença, não apenas na vida daqueles moleques, mas na vida de todo o mundo, era dinheiro: dinheiro, e nada mais. (p.25)
Basta trabalhar e se esforçar bastante para conseguir o que desejamos? Quem acredita, sempre alcança? Partimos, todos, do mesmo lugar nessa disputa? É em torno desses mitos que lidamos com a vida prática, que é bem diferente disso.

Na minha leitura, cheguei a concordar com Pedro e achar bastante razoável a lógica que embasou a sua decisão de ficar rico a qualquer custo. A teoria estava ali. Agora era necessário colocar em prática sua pequena revolução.
Era isso. Porque, pensando bem, seu problema era pensar demais. Pensar tinha se tornado um vício, que o mantinha num permanente estado de dúvida sobre tudo, impedindo-o de agir em qualquer esfera (p.135)
É muito difícil avaliar e julgar a conduta de pessoas ou personagens que vivem uma realidade tão distinta. É relativamente fácil apontar certo e errado quando não estamos lutando para sobreviver.
A leitura, aqui, é fácil e cativante. Dá pra parar e voltar depois, apreciando os momentos distintos da história. A sequência final é, como se dizia nos filmes da temperatura máxima, “eletrizante”.
Mas, afinal, quando foi que brotou alguma felicidade, por menor que fosse, num coração conhecedor dos fatos em toda sua profundeza? Quando foi que houve alegria, senão alimentada por completas mentiras ou verdades desfalcadas? Sempre que a realidade mete o pé na porta, não há sorriso que não trate de escapulir pela janela. Todo felizardo é, antes de mais nada, um iludido.
Dei algumas risadas e acredito que o autor tenha desejado isso, trazer algo tão sério e profundo, mas também com a acidez do humor e da crítica ao absurdo. O teor emocional das atitudes e pensamentos dos personagens não fica de fora, o que contribui para que sobrem, ainda, algumas lições de vida.
É difícil falar quando a alma faz tanto barulho: só se quer ouvi-la. (p.292)
“Os supridores” foi publicado pela Todavia (2020) e me arrisco a dizer que foi uma das melhores leituras que fiz nos últimos tempos. Uma bela edição física. Recomendadíssimo. Escolha certeira do Cubo Literário.
Além de publicar os textos por aqui, eu sigo publicando os textos no meu Substack.
Estou lendo o novo livro da psicanalista Vera Iaconelli, “Análise”, e curtindo bastante. Pretendo escrever sobre. Trata-se de um ensaio memorialístico, onde a autora entrelaça os fios de sua história familiar e de seu processo de análise ao longo da vida. Já indico. No íntimo, nutro um amor bandido pela psicanálise.
Por hoje, é só. Um abraço.
1 Coelho, L., & Sparemberger, A. (2021). Os supridores, de José Falero: a periferia do Rio Grande do Sul em foco. Uniletras, 43, 1–9. https://doi.org/10.5212/Uniletras.v.43.17888.2021
2 José Falero coloca a voz da periferia na literatura brasileira. reportagem cultural. Publicada em 14 de Julho de 2022 às 18:29. Disponível em: https://www.jornaldocomercio.com/especiais/reportagem-cultural/2022/07/855165-jose-falero-coloca-a-voz-da-periferia-na-literatura-brasileira.html
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