Pé de moleque do Gilson

Estive pensando sobre o pé de moleque do Gilson. Não consigo comer ou ver um pé de moleque e não lembrar do pé de moleque do Gilson. Eu devia ter vinte anos, um pouco menos, um pouco mais. Um dos grandes amigos do meu pai – literalmente, porque ele me parecia bem alto – acabara de receber um diagnóstico de uma doença grave.

Essa notícia, à época, não me inspirou tanta empatia quanto inspiraria no sujeito que sou hoje, aos quarenta anos, mas me provocou algumas preocupações com a saúde, que eu via, entretanto, como algo distante. Eu era jovem e inabalável. Hoje, me sinto mais vulnerável e real, e talvez isso faça com que minha consciência sobre aproveitar a vida tenha sido ampliada.

Naquele período, eu via, pela perspectiva dos meus pais, que se tratava de algo sério e que envolvia grande sofrimento. O Gilson, que devia ter a idade que tenho hoje ou menos, passava a ser uma paisagem mais constante na nossa vida. Já com dois filhos, ele gerou outros dois desde o diagnóstico, e nossa convivência esporádica se dava na condição de filhos dos amigos, muitas vezes em sua casa, numa rua longa do Santa Tereza, com nome de capitão.

Não foi possível localizar uma foto do pé de moleque original, mas ele se parecia bastante com esse aqui

Aquele gigante, que se fazia presente em palmas estrondosas nas comemorações de aniversário e na cantoria poderosa e descompassada, vinha se tornar peça chave de um momento específico. E isso se deu, particularmente, através de um doce: um pé de moleque. Veja só, lembro, como se fosse hoje, do meu pai chegando com um ou dois potes transparentes de pé de moleque, anunciando que o Gilson tinha começado a fazer o doce pra vender e que a gente experimentasse.

Fruto de uma suposta receita especial, o pé de moleque era maravilhoso e o nosso consumo de amendoim aumentou consideravelmente nos anos que se seguiram. Não sei se foi daí que o pé de moleque se tornou um dos meus doces favoritos, mas pode ter sido. Misto de uma necessidade financeira e terapêutica, tanto o pé de moleque, quanto as visitas daquele amigo ao meu pai, se tornaram marcas de um período.

Na minha cabeça, isso durou uma eternidade, mas pelo que consultei, talvez uns três ou cinco anos. Digo que durou porque isso representou uma era, que se iniciou com a presença mais efetiva do Gilson em nossas vidas e findou com a sua morte, em dois mil e oito. Na minha mente – e estômago – de vinte, isso tudo vinha acompanhado de fartas doses de doce de amendoim. Imaginava um quartinho, um Gilson de touca descartável e muitos doces em produção.

E o tom que utilizo para contar essa história se justifica: havia tristeza, claro, mas o que mais me lembro é da alegria. Havia uma atmosfera de felicidade e otimismo naquilo tudo, apesar dos prognósticos negativos. A evolução da doença, o seu emagrecimento e o tornar-se frágil se contrapunham à perseverança dele em se curar e cuidar de sua família.

E porque pensei nisso? Outro dia, ao conviver com a minha sobrinha que completa seus cinco aninhos em dois dias, me vi como o seu “tio velho”. O seu “tio quarentão”. Calma, eu explico. Não me sinto um “tio velho”, mas me peguei sendo o fantasma dos meus tios do passado. Fantasminha camarada, nada assustador. Eu sou os meus tios e tias de vinte ou trinta anos atrás. Uma figura de um adulto distante no tempo, habitante de um mundo ainda desconhecido.

Para ela, sou o tio Drido, uma vez que Rodrigo era muito avançado e “Drido” acabou se tornando útil, bonitinho e definitivo, até que dure. A Tia Rosa, a Tia Rô, a Tia Berenice, a Tia Virgínia. Os agregados tios César, Nelson e Cacá. Figuras da minha infância. Algumas ainda presentes, somente envelhecidas naturalmente pelo tempo, outras ausentes, apagadas pela distância.

Em que momento e por quais motivos apagamos as pessoas que foram tão relevantes em períodos da nossa vida da nossa existência atual? Quantas manhãs, tardes e noites os nossos tios se dedicaram com amor ao nosso cuidado? Muitas. Quando vejo uma curtida de uma tia em um vídeo meu, nas redes sociais, ou um comentário de outra, em um texto, sorrio com alegria genuína. Como é bonito termos testemunhas do avançar do tempo. Em nossa pequena família, ainda tento entender as configurações do distanciamento.

Resgatei essa tirinha que desenhei há muitos anos e achei pertinente

Outro dia, acho que no último natal, comentei com uma das minhas tias sobre um episódio de um natal da infância no qual eu, na mesma ocasião que os meus dois primos de idade similar, ganhei dela um conjunto de cuecas, enquanto os meus primos ganhavam carrinhos e se divertiam. Criança frustrada diante do presente funcional – ela ficou em dúvida entre uma bola de vôlei e uma de basquete, e optou pelo kit de cuecas -, guardei essa ocasião na memória, que virou história e piada de muitos natais, mas que nunca havia compartilhado com a tia em questão. Rimos muito. Eu, agora, com a idade que ela devia ter quando me presenteou com as cuecas. Se eu tivesse ganhado um carrinho, não teria piada, nem texto, nem história.

A passagem do tempo é muito curiosa. Triste, claro, mas também feliz, muitas vezes. Recentemente, li, em um dos contos do livro Expiração (2019), do escritor norte-americano de ficção científica Ted Chiang, um trecho que dizia o seguinte:

“a experiência não é apenas a melhor professora, é a única […] se você quer criar o bom senso que surge depois de estar no mundo por vinte anos, é preciso dedicar vinte anos a essa tarefa. Não é possível acumular uma coleção equivalente de lições criativas em menos tempo; a experiência é algo algoritmicamente incomprimível”.

Fui obrigado a concordar.

Não sou o mesmo que vinte anos atrás. Nem meus tios e tias. Nem será a minha sobrinha. Bia, hoje você faz cinco anos e o seu tio faz quarenta. Quando você tiver vinte, espero estar com cinquenta e cinco. Não serei o mesmo que sou agora, nem você. Entre pés de moleque, amigos, tios e tias, cuecas e carrinhos, experienciamos a vida de forma única e incontornável. É aqui e agora, mas também há trinta e daqui a vinte anos.


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