“Ser branco é viver sem se notar racialmente, numa estranha neutralidade. […] É o outro que é de cor.”
O ano era dois mil ou dois mil e um. O cenário era um colégio particular de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, frequentado, principalmente, pela classe média branca.
Eu, com meus quinze anos de idade, havia recebido a tarefa, em alguma disciplina, de elaborar e gravar, em grupo, uma espécie de anúncio para televisão. Não me pergunte qual era o objetivo da tarefa.
A atividade consistia, basicamente, em pensar e escrever um roteiro, criar um produto, definir os papéis e, de posse de uma câmera de vídeo, gravar um breve comercial em uma fita, que seria entregue ao professor e apresentada em sala de aula. Simples assim.
Eu e meus colegas, então, formamos um grupo com os mais chegados (cerca de sete ou oito rapazes inconsequentes) e colocamos a cabeça para funcionar. Talvez o que venha a seguir não te surpreenda. Caso surpreenda, talvez você esteja mal informado.
O produto? Uma espécie de poção mágica ou medicamento.
Os atores? De um lado, meu amigo mais próximo, à época, que aqui chamaremos de Orlando, um dos poucos negros que frequentavam o colégio; de outro, eu, um sujeito bastante branco.
O roteiro? Orlando vivia triste, desanimado e sofria preconceito por ser negro.
Um dia, alguém ofereceu pra ele uma poção mágica, um remédio que prometia “embranquecê-lo”, resolvendo “todos os seus problemas”.
Orlando compra e toma a poção. Um passe de mágica e Orlando se transforma em mim, o rapaz branco, que agora vive feliz e confiante.
Fim de cena.
Você deve estar pensando: que merda foi essa?
Racismo não é piada. É o que penso hoje, aos trinta e nove anos, quase vinte e cinco anos depois, ao relatar esse episódio estapafúrdio.
É tanta coisa errada junta que fica difícil até nomear.
Mas, na cabeça daquele grupo, nada estava errado naquela “brincadeira inofensiva”. Nem para os agressores, nem para a vítima.
Hoje, olhando essa cena (que, graças ao desenvolvimento incipiente da tecnologia da época, ficou enterrada na história e na memória), sinto vergonha, mas fico minimamente aliviado por conseguir enxergar o tamanho do erro.
Isso fez, de nós, pessoas ruins? Não sei. Não tenho contato com nenhum dos envolvidos, nem me lembro de todos.
Não estar consciente do erro diminui a gravidade do ato? Acho que não.
Saber disso, hoje, me torna alguém imune a cometer erros dessa natureza? Com certeza, não.
O que acho interessante é pensar que, naquele contexto, nenhuma ou pouquíssima repercussão foi gerada. É provável que tenha conquistado algumas risadas nervosas (ou sinceras) da classe e talvez algum espanto, mas nada demais.
Diante de um ato explicitamente racista, não me lembro de sofrer nenhum tipo de repreensão, seja por parte dos professores, colegas ou familiares.
O episódio se tornou apenas “um absurdo” de um passado errado.

Mas, será que estamos falando apenas de um “passado errado”? Com certeza, também não.
Recentemente, fui “convidado” a ministrar a disciplina de “Psicologia, Diversidade e Inclusão” para o curso de graduação em Psicologia, entre outras matérias e estágios.
Confesso que, a primeira coisa que pensei, foi: eu? Branco desse jeito?
Não seria, eu, “homem demais” pra falar de diversidade? “Branco cis hetero normativo demais”?
Ainda que o tema “diversidade e inclusão” não seja apenas sobre racismo, mas contemple uma série de variabilidades das formas de ser e estar no mundo, senti que eu era “padrão demais” pra abordar o tema.
Como combater isso? Como usar de uma forma produtiva e crítica a minha posição privilegiada de homem cis hetero branco de classe média?
Para quem já ficou confuso com alguns termos, recomendo a leitura do Guia de Diversidade e Inclusão da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que traz diferentes tópicos, bastante didáticos, para problematizar e orientar uma formação da sociedade sobre o tema.
Já venho tentando ler e aprender sobre racismo, especificamente, há algum tempo, como trouxe em alguns textos, ao falar da biografia de Lima Barreto, do livro da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, da filósofa Angela Davis ou do excelente documentário “Eu não sou seu negro”, baseado em um manuscrito-roteiro inacabado deixado pelo escritor norte americano James Baldwin.
Estou consciente de que, como afirma a filósofa e ativista Djamila Ribeiro, “é impossível não ser racista tendo sido criado numa sociedade racista. É algo que está em nós e contra o que devemos lutar sempre”.

Contudo, como diz a autora, “não se trata de se sentir culpado por ser branco: a questão é se responsabilizar. Diferente da culpa, que leva à inércia, a responsabilidade leva à ação. Dessa forma, se o primeiro passo é desnaturalizar o olhar condicionado pelo racismo, o segundo é criar espaços, sobretudo em lugares que pessoas negras não costumam acessar” (posição 205).
O racismo é estrutural.
Um levantamento realizado pela Rede de Observatórios da Segurança, aponta que, apesar de negros e negras serem as principais vítimas da violência no Brasil, “um impressionante silêncio sobre o tema racial tem prevalecido na mídia e no debate público”.
O relatório aponta que “o racismo é reproduzido cotidianamente, inclusive na produção de conhecimento quando a raça é marginalizada e perspectivas antirracistas são silenciadas”.
Como etapa da minha preparação para a disciplina, fiz a leitura de “O pacto da branquitude”, da doutora em Psicologia e fundadora do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert), Maria Aparecida da Silva Bento, ou Cida Bento.
O livro é uma obra imprescindível para quem busca entender o racismo no Brasil e assumir, de uma vez por todas, uma postura antirracista na vida pessoal e profissional.
Para a autora:
“não temos um problema negro no Brasil, temos um problema nas relações entre negros e brancos. É a supremacia branca incrustada na branquitude, uma relação de dominação de um grupo sobre outro, como tantas que observamos cotidianamente ao nosso redor, na política, na cultura, na economia e que assegura privilégios para um dos grupos e relega péssimas condições de trabalho, de vida, ou até a morte, para o outro” (posição 9).
Cida Bento, ao abordar essa espécie de “acordo não verbalizado de autopreservação, que atende a interesses de determinados grupos e perpetua o poder de pessoas brancas”, diz que esse pacto:
“possui um componente narcísico, de autopreservação, como se o “diferente” ameaçasse o “normal”, o “universal”. Esse sentimento de ameaça e medo está na essência do preconceito, da representação que é feita do outro e da forma como reagimos a ele” (posição 12).
Trata-se de um pensamento colonial que perpetua e oculta as desigualdades raciais. O “privilégio branco”, portanto, “é entendido como um estado passivo, uma estrutura de facilidades que os brancos têm, queiram eles ou não”.
Entre muitos pontos importantíssimos para se pensar qualquer política de diversidade que busque mudanças efetivas, Cida Bento aponta a fragilidade da branquitude, algo que consigo perceber no meu círculo de convivência.
Para a autora:
“essa fragilidade é […] como um estado inerente à branquitude, no qual o estresse racial se torna intolerável para as pessoas brancas. Quando incitadas ao debate racial, nessa perspectiva, as pessoas tendem a reagir defensivamente e a responder com raiva, medo e culpa”.
Como ressalta Alexandre Reis Rosa, em seu artigo “Relações Raciais e Estudos Organizacionais no Brasil”, ainda convivemos, no Brasil, com o “mito da democracia racial”. Ou seja, a ideia de que vivemos em um país que conta com o “estado de plena igualdade entre as pessoas independentemente de raça, cor ou etnia”.
Na verdade, ao observar pesquisas que mostram que boa parte da população brasileira entendem que o Brasil é um país racista (os outros são racistas), mas apenas uma pequena parcela se considera, individualmente, racista (mas eu não sou racista), observamos que convivemos, como diz Rosa, com “interpretações utópicas de uma sociedade livre de tensões e conflitos raciais” (p.256).
Para encerrar, trago um trecho que achei particularmente excepcional, porque ilustra bem o que muitos brancos podem pensar, diante do tema.
Ao dizer da fragilidade da branquitude e da dificuldade dos brancos em lidar com as ações que buscam promover a diversidade em organizações, Cida Bento ressalta:
Algumas situações que causam reações de autodefesa nas pessoas brancas e que costumamos constatar em organizações que estão utilizando ação afirmativa são: Dificuldade de as pessoas brancas reconhecerem que o acesso a oportunidades e recursos é diferente para vários grupos raciais. Ou seja, não querem questionar o mito da meritocracia. Deparar-se com pessoas negras em posição de liderança. Isso desafia a autoridade branca. Participar de atividades em que pessoas negras falam de racismo de maneira direta, desnudando os códigos da branquitude. Serem racializadas, já que pessoas brancas se veem e são vistas como universais. Outros fatores reforçam e perpetuam essa fragilidade, entre eles: a autossegregação de pessoas brancas, em seus bairros, escolas, clubes, empresas; e a arrogância racial que as impede de aprender e falar de raça e racismo de maneira mais frequente e aprofundada (p.83).
Não sejamos arrogantes. Vivemos em um país racista. Reconhecer, falar, agir e discutir o tema é algo fundamental.
Espero ainda aprender muito sobre diversidade, equidade e inclusão, na medida em que tento produzir, também, pensamento crítico e necessário para evitarmos episódios como o que inicia esse texto.
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