Oração para desaparecer, de Socorro Acioli

A menina ainda não percebeu que quase nada na vida faz sentido?

Histórias de amor são sempre cativantes. Histórias de amor com realismo fantástico então, muito mais. Afinal, uma dose de imaginação não faz mal a ninguém, e é bom se distrair, às vezes, com mundos diferentes do nosso. A realidade anda um pouco complicada.

Bom, para quem não sabe, assim como eu não sabia até outro dia, o realismo fantástico é um estilo artístico que mistura elementos da vida real e cotidiana com elementos mágicos. Portanto, espere algo que fuja um pouco da casinha e abra a cabeça.

Voltemos ao amor. Grandes amores. Ah, como é bom viver um grande amor 💌. Mas calma. Já dizia Vinícius de Moraes que, para viver um grande amor, “Preciso é muita concentração e muito siso, Muita seriedade e pouco riso”.

Não só isso, para viver um grande amor, “É muito, muito importante viver sempre junto, E até ser, se possível, um só defunto, Pra não morrer de dor”.

Pois bem, aproveito a deixa do defunto 💀 para dizer que Socorro Acioli me surpreendeu mais uma vez.

Depois de ter adorado “A cabeça do santo”, primeiro romance da autora, foi a vez de me encantar com “Oração para desaparecer”, um belo livro, difícil de largar e maravilhosamente escrito, na minha opinião, e que, recentemente, está entre as indicações do Prêmio Jabuti.

Para quem ainda não a conhece, nascida em Fortaleza, em 1975, Socorro é professora e publicou diversos livros infanto-juvenis. Em 2006, foi selecionada para a oficina de roteiros Como contar um conto, ministrada pelo famoso escritor colombiano Gabriel García Márquez.

Foi da proposta que apresentou para participar dessa oficina que resultou o livro “A cabeça do santo”, publicado em 2014, pela Companhia das Letras. O seu segundo romance, sobre o qual falo aqui, “Oração para Desaparecer”, foi publicado em novembro de 2023, pela mesma editora.

Sem saber absolutamente do que se tratava, lá fui eu encarar mais uma história sem grandes expectativas. Não fazia ideia do que tratava o livro, nem a sinopse eu tinha lido. Fui apenas pela autora e pela promoção do e-book.

Logo de início, fui cativado por uma premissa bem inusitada que, de tão inusitada, não vou mencionar aqui. Ora bolas, não vou estragar a surpresa. Só digo que o livro trata de recomeços e de amores perdidos ou vividos, e de fantasmas passados.

Vida e morte são mistérios que ninguém alcança. Tudo o que se fala sobre nascer e morrer é mera aposta. A morte é dolorosa, mas talvez o nascimento seja pior, e minha desgraça estava ali, entre uma coisa e outra.

No romance, conhecemos a história de “Cida” (ou seria Joana?), “uma mulher que, sem lembrança nenhuma de seu passado, precisa reconstruir a vida em um lugar completamente desconhecido, apenas com a língua portuguesa como porto seguro”.

Nas palavras da autora: “: Uma capa azul da cor do mar da Almofala daqui e do céu da Almofala de lá”

O enredo, que explora bastante o território português, brinca com a proximidade histórica de Portugal com o Brasil e com o continente africano. As Almofalas de lá e as Almofalas de cá. Somos levados a conhecer paisagens e imaginar vidas distintas. Conhecemos tradições indígenas, culturas e formas diversas de compreender a realidade.

Mais uma vez, como fez no livro anterior, Socorro parte de acontecimentos reais. Dessa vez, em Almofala, no Ceará, região que “é famosa pela Igreja Nossa Senhora da Conceição, soterrada por quase cinco décadas pelas dunas e que depois ressurgiu” para construir um enredo mágico.

Em artigo publicado na Revista da Academia Brasileira de Letras (página 92), Socorro conta que escreveu este romance “por obediência a uma ordem dada em 1946 mas que eu só recebi em 2016 e concluí em 2023”. Segundo ela, tudo começou ao receber, de uma amiga, a foto de uma igreja quase soterrada, sem datas e sem referências.

É interessante, principalmente para quem gosta de escrever e entender os bastidores da escrita, observar como um romance é construído.

Ainda em seu artigo, Socorro diz:

A escrita do romance é um ato de fé. É uma doação. Um dia alguém decide doar dias, meses e anos de sua vida, transformar vida em palavras e entregar isso a outra vida. Tome aqui cinco anos de dedicação, diz o autor, na esperança de ter aberto uma porta larga no velho mundo do leitor. Seu tempo é multiplicado nas horas dos outros, é quase como ter tudo de volta. Faz valer a pena, faz sentido ter escrito. Está provado o mistério da fé.

A autora comenta a trajetória que a levou a criar essa história, os personagens, a trama, como nesse trecho:

Decidi ir a Almofala ver a igrejinha de perto. Assisti missa domingo de manhã e nem sou católica. Observei as pessoas e os ritos. Falei com muita gente e me contavam o que ouviram dos seus pais e avós. Que a duna, de noite, assustava. Que ouviam o sino badalando ali por baixo. Que na lua cheia tiravam a areia na barra da saia, nas latas, nas sacas, mas no dia seguinte o vento cobria tudo de novo.

Ler e agora pensar no livro à luz dessas informações é ainda mais encantador.

A Igreja de Nossa Senhora da Conceição, em Almofala (CE): soterrada por areia e ressurgida após quase cinco décadas

Por fim, Socorro cita uma crônica de Carlos Drummond de Andrade, com o título “Areia e Vento”, publicada no Correio da Manhã de 17 de novembro de 1946, baseada na história da igreja de Almofala:

assalta-me o desejo de convocar os poetas, os sociólogos, os pintores, os romancistas e os músicos do Brasil e pedir-lhes que vejam, mas vejam longamente, a igreja de Almofala. […] Vinde poetas e vinde sábios, vinde celebrar comigo este caso de vento e areia, e o índio disperso e a soterrada igreja.

O enredo surgiria aqui, da consequência de um conflito real entre o povo tremembé e os portugueses, por conta da “interdição da igreja e a retirada da imagem de Nossa Senhora da Conceição da Almofala, que iria para Fortaleza”:

Drummond diz na sua crônica que uma prostituta chamada Joana Camelo, indignada com o roubo da santa, tirou o tamanco do pé e jogou na cabeça do padre. Agora sim, eu tinha uma história.

Fruto de muita pesquisa, o livro faz com que o leitor se transporte para o território da imaginação. Nessa entrevista ao Diário do Nordeste, a autora conta alguns detalhes bem curiosos também.

O romance é dividido em três grandes capítulos que exploram diferentes pontos de vista e momentos da história. Socorro Acioli constrói, com muito talento, um universo mágico que atravessa a realidade e que nos faz, por um momento, sentir que tudo aquilo é possível.

De tanto encher meu coração com a beleza, esqueci de sofrer.

Entre igrejas soterradas e imagens de santa abandonadas, alternamos entre um formato que se assemelha a uma entrevista com a protagonista, um bate-papo com Miguel e um momento marcado pela própria narração de Cida-Joana. Pra mim, funcionou bem. É uma escrita que também carrega poesia e muita imaginação.

Como disse a autora, ao falar do processo de escrita do romance:

Enquanto estive presa, por vontade, nessa história, vivi anos muitos felizes. Fiz amigos, conheci os Tremembés. Fui abençoada, curada. Entendi a vida de outras formas. Tive medo de morrer e deixar o livro inacabado e assim descobri que eu nunca quis tanto viver.

Ultimamente, venho indicado livros baseados em como eles me fizeram sentir, ao invés de ficar justificando muito e contando a história. Esse livro de Socorro Acioli traz alento, beleza e atravessa nossa concepção de realidade. É um livro bonito.

É uma leitura prazerosa que não exige grande esforço de atenção, mas um coração aberto para conhecer e imaginar o amor.

Como alguém julga que sabe algo da vida se não viveu um amor? Um grande amor acidentado assim, que domina os dias e as noites dos pensamentos? Que quanto mais parece impossível, mais toma conta? Que não deveria ter acontecido e que nunca mais deixa de acontecer por dentro?

Um grande abraço!


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2 Respostas para “Oração para desaparecer, de Socorro Acioli

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