Divórcio, de Ricardo Lísias

Percebo que, recentemente, tenho gostado de conhecer livros diferentes, com formas de conduzir a narrativa fora do habitual, com personagens ou temas inusitados. A partir de uma indicação de amigos, resolvi colocar no topo da lista um livro que não estava no meu radar, e que prometia ser surpreendente.

Divórcio, do Ricardo Lísias, é um livro muito distinto do que já li. É uma daquelas obras que te prendem até o final, mas de uma forma estranha. Publicado em 2013, pela Editora Alfaguara, o livro gerou certo burburinho, uma vez que adotou a “autoficção” como gênero de escrita, e acerta em cheio ao produzir inúmeros questionamentos na cabeça do leitor.

Ricardo Lísias é paulista e nasceu em 07 de julho de 1975. Publicou diversas obras, entre romances, contos e ensaios. É formado em Letras e doutor em Literatura Brasileira.

Basicamente, a história traz a experiência vivida pelo narrador, que também se chama Ricardo Lísias, após descobrir, acidentalmente, o diário de sua esposa, jornalista com quem havia se casado há apenas quatro meses.

Com trechos nem um pouco agradáveis, a leitura do diário faz com que o narrador entre uma espécie de desmoronamento. Real ou ficção?

“Nos piores dias após o divórcio, apenas o sorriso de alguém me trazendo o almoço no restaurante já me obrigava a ir ao banheiro para não passar o papel ridículo de chorar no meio de todo mundo. As pessoas olham para o outro lado. Talvez alguém traga água. Uma explicação, jamais. O pior de uma dor como essa é a impossibilidade de fazer um plano. É impossível confiar em qualquer coisa. Perdido na Cracóvia, bastava criar uma estratégia. Um corpo sem pele, porém, não consegue se proteger” (posição 1439)

Estar sem pele, na carne viva, após um trauma, é uma imagem muito forte e à qual muitos conseguem se identificar. Em uma mistura de ficção, realidade e metalinguagem, o autor traz um relato visceral e grosseiro, no melhor sentido, das emoções humanas, sem filtros. Um relato honesto e sincero do sofrimento.

A raiva, a vergonha, a tristeza e a angústia estão ali, nos ataques de fúria e na desconexão consigo mesmo. Sua recuperação, após descobrir o diário que o difamava e mostrava um lado obscuro desconhecido de sua esposa, se dá através da escrita e da corrida.

Escrita que se dá neste livro, principalmente, uma espécie de auto relato terapêutico.

“Você pode chorar desesperadamente na avenida mais importante da América Latina. Ninguém vai te ajudar. Ninguém me perguntou nada quando entrei na linha errada do metrô e olhei confuso para o letreiro. Eu precisava que um velho me dissesse algo, ou uma moça, mas ninguém me olhou no metrô de São Paulo no pior dia da minha vida” (posição 68)

É um livro pra ler de peito aberto, disposto a imergir na confusão de uma mente transtornada, que se materializa na estrutura e forma de expressão do texto. É um tipo de elaboração ficcional da realidade.

O livro de Ricardo rendeu alguns artigos que buscam analisar a obra, como o texto de Milena Magalhães, em virtude de sua escrita inusitada.

Ricardo utiliza bastante da repetição de algumas frases e trechos, revelando algo mais ou simplesmente repetindo ideias em outro contexto, reforçando o argumento central e a ideia de que a reconstrução da nossa pele, após um trauma, se dá assim, em espiral.

“Divórcio é um livro repetitivo. Já escrevi algumas vezes que o fato de concluir algo que eu tenha planejado me faz bem. Mas como minha cabeça se desarranjou completamente, cada confirmação é um sinal de esperança” (posição 2045)

Recomendo bastante a leitura! Deixo aqui alguns destaques:

Posição 200 – “tão silencioso quanto viajar para um lugar desconhecido. Se não entender nada do idioma das pessoas que o cercam, você é obrigado a mergulhar no próprio universo e descobrir-se de novo. Como se estivesse nascendo”

Posição 297 – “Tudo continua silencioso, como sempre gostei. Estranho, devo ter raciocinado, é o pior momento da minha vida e o mundo me oferece o que sempre procurei. Sinto uma tranquilidade esquisita”

Posição 367 – “Em momentos de crise, preciso de silêncio. Pensar me acalma. Só tem sentido o que é feito devagar”

Posição 417 – “Tenho necessidade de silêncio e, de vez em quando, afasto-me para organizar a cabeça”

Posição 419 – “A literatura serve-me em grande parte para isso: adoro ficar remexendo a linguagem, medindo todas as possibilidades e tentando entender até onde posso ir, para no final pesar o resultado e refletir para saber se o texto realmente me expressa. É a maneira que tenho, silenciosa e discreta, de sair organizadamente da confusão que tantas vezes me assalta por dentro. Se mergulhar nos ruídos do mundo exterior, nos lugares cheios de luzes, música e gente encostando em mim, vou me machucar”

Posição 932 – “Uma caminhada longa causa dor nas pernas, um peso nas coxas e o coração acelera. Estou vivo, portanto. Como meu corpo não tinha pele, eu passava o tempo inteiro conferindo meus ossos e os órgãos mais importantes. Respirar fundo não traz apenas fôlego: meu pulmão está aqui”

Posição 1025 – “Só gente vulgar não gosta de silêncio”

Posição 1028 – “A transcendência quase sempre está na palavra não”

Posição 1404 – “É preciso ser estrangeiro e não entender nada ao redor para estar de fato sozinho”

Posição 1434 – Além disso, as palavras ao redor são todas compreensíveis. É fácil entendê-las, mas elas não explicam nada. O mundo oferece pouco para as pessoas que estão muito vulneráveis. Uma explicação, jamais. Qualquer pequenino alento emociona muito”

Posição 1501 – “Depois, eu iria perceber que muitos jornalistas têm a habilidade de falar horas sobre assuntos de que não entendem nada”

Posição 1532 – “Não estou tratando de uma pessoa em particular. Minha ex-mulher não existe: é personagem de um romance. O crescimento brasileiro dos últimos anos corroeu muita gente em troca de um apartamento próprio, um emprego com salário de dez mil reais e outros duzentos e cinquenta mil no banco”

Posição 1589 – “Pensando friamente, agora que já tenho uma geladeira e comprei outros exemplares dos livros que dei para os meus amigos, não é difícil ver que ela foi aos poucos matando a pessoa que eu era antes de começarmos a namorar”

Posição 1940 – “O medo da solidão faz as pessoas andarem mais devagar”

Posição 2159 – “A falência da ética, inteiramente soterrada pelo interesse financeiro, causa ditaduras tão violentas quanto as antigas. Como elas aparecem acompanhadas por uma variação estranha da palavra liberdade, ficam mais difíceis de ser identificadas. Vou dar um exemplo: e a minha liberdade, depois de ter testemunhado e vivido tudo isso sobre o meu corpo nu, de escrever um livro e ser o mais claro e direto possível?”

Posição 2170 – “Não podemos ter acesso a nenhum ponto de vista além do nosso, por isso precisamos desenvolver um padrão ético para conviver com os outros. E a ética envolve necessariamente acordos. Quem os rompe vai contra ela, obviamente”

Posição 2186 – “Para se relacionar afetivamente com alguém, a vida adulta exige ética. Acordos precisam ser feitos e mantidos. Se for para ultrapassá-los, é melhor romper o relacionamento. Adultério é coisa de gente frágil. Aliás, depois de todo o desbunde das últimas décadas, é mais que um clichê: é vulgar e fora de moda”

Posição 2286 – “Na justiça, a testemunha é considerada a “prima pobre das provas”. O off é a prima pobre e covarde”

Posição 2316 – “A verossimilhança deixou de ser um imperativo para a ficção. O mundo real não oferece mais bases sólidas. Mesmo a certeza de que não morri e acabei dentro de um romance meu precisou ser refeita através de tratamento psicanalítico. É um jeito que encontrei para continuar vivendo, dormindo e respirando mais ou menos como fazia antes da ficção inverossímil que foi o meu primeiro casamento”

Posição 2467 – “O amor não é um jogo, mas sim um romance. É melhor colocar o ponto final em um para fazer outro. Estou quase lá”

Posição 2489 – “Divórcio descreve uma travessia atrás de respostas”

Posição 2571 – “Não tenho dúvida, adultério é para os fracos. Os fortes se separam. Mentira é para gente covarde”

Posição 2780 – “É como Wilde disse no texto que recomendei: “Se encontrares uma só falsa desculpa para ti, não tardarás a encontrar cem, e serás exatamente o que era antes.””


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