Com seus trinta e poucos anos, Diego não tinha carro. Opção pessoal. Falta de recursos, na verdade, mas para os amigos, para o mundo e para as garotas: opção pessoal. Alimentava, portanto, o sistema de transportes por aplicativo e o transporte público como ninguém. Naquela noite de uma terça-feira de janeiro, Diego chegava de mais um dia de trabalho, acumulando horas extras, após suar como se tivesse feito uma aula de crossfit em um dos vagões mais quentes do antigo metrô.
Adentrou a portaria principal do seu condomínio, que acumulava torres de apartamentos e mais apartamentos, e faria a pequena caminhada de sempre, entre a entrada do condomínio e a porta de sua torre, uma das mais distantes, porém uma das mais baratas na época que havia adquirido seu querido cafofo de poucos metros quadrados.
Essa área, habitada por vagas e mais vagas demarcadas por linhas amarelas, era conhecida, na cabeça de Diego, como o espetáculo do egoísmo humano, onde moradores exibiam e disputavam qual era o maior SUV ou caminhonete do pedaço. Alguns vizinhos, mais excêntricos, exibiam um ou outro buggy amarelo, o que não fazia sentido algum, já que moravam em uma grande capital. “Seres humanos são terríveis”, pensava Diego, enquanto subia lentamente a via sacra até a torre três.
Como de hábito, Diego gostava de apreciar o vazio de sua vaga. Sempre que chegava em casa, gostava de olhar para a esquerda, localizar a sua vaga a alguns metros e observar o espaço retangular entre duas faixas amarelas ocupado por nada mais que uns poucos tufos de grama. Mas não naquele dia. Entre as faixas amarelas, estava lá, ele, um carro cinza desconhecido.
Como se tivesse levado uma coronhada na cabeça, Diego tonteou e demorou alguns segundos até que confirmasse, “sim”, era a sua vaga. “Como pode ser? Quem ousaria ocupar a minha vaga?”, pensou o agora proprietário indignado.
Soltando fogo pelas ventas, Diego foi até a portaria e, em clima de manual de direitos do consumidor, começou a palestrar sobre o absurdo da situação e exigiu solução imediata para aquilo que, na opinião dele, mostrava que não se podia ter mais um minuto de paz neste caralho país. Sim, Diego podia ser um pouco dramático em alguns momentos.
– Infelizmente, não sabemos de quem é o veículo, senhor.
– Como assim não sabem de quem é o veículo?
– Só sei que ele está aí desde cedo, não foi no meu plantão.
– Mas não deixaram nada anotado? Quem autorizou que ele parasse na minha vaga?
– Meu senhor, como eu lhe disse, não sei informar. Talvez o Edson saiba.
Edson era o síndico. Diego não gostava do síndico. Sacou o seu celular e prontamente ligou para ele, com mil ofensas diferentes na cabeça. O vocabulário de Diego para xingamentos era muito requintado.
– Alô, quem fala? [crianças gritando ao fundo]
– Aqui é Diego, morador do apartamento 407, torre três. Tem um carro na minha vaga.
– Um carro na sua vaga? [pai, vem jogar!!!]
– Sim, isso que eu disse, um carro na minha vaga.
– O seu carro está na sua vaga? [Vida, vem logo jantar, o macarrão vai esfriar!] (me perdoe pela repetição, mas o diálogo foi assim)
– Claro que não. Eu nem tenho carro. É um carro cinza, caramba.
– Ah, compreendo. O senhor olhou com o vigia? [papai, porque você não fica comigo?]
– Ele disse que não sabe, não foi no plantão dele.
– Entendo. O senhor está precisando da sua vaga? [mudança no som ambiente, Edson foi pra varanda]
– Oi? (o nível de ódio de Diego começava a subir). Não, mas tem um carro que não é meu parado na minha vaga. Isso é um absurdo. E, ainda por cima, não sabem de quem é o carro.
– Entendo a indignação do senhor [Só um minuto vida, já estou indo – gritou longe do telefone, Edson] . Neste caso, vamos ter que aguardar.
– Aguardar? Como é possível que o condomínio não saiba de quem é um carro que entrou aqui logo cedo e está ocupando uma vaga que não é dele? Não dá pra olhar nas câmeras? Ligar pro vigia do plantão anterior?
– As câmeras estão em manutenção e o Marcão (era o vigia do plantão anterior) agora está no segundo emprego, não vai conseguir atender. O senhor está precisando da vaga? (sim, ele arriscou mandar essa, mais uma vez). Vamos aguardar um pouco, tenho certeza que o dono do carro vai aparecer.
– Não, não estou precisando, já disse. Mas é a minha vaga. Tem mais de trezentas vagas aqui. Quero esse carro fora dela, imediatamente!
Você deve estar pensando: “poxa, Diego, dá pra esperar um pouquinho, né? Quanta impaciência, uma coisa tão pequena”. Coisa pequena? Não para Diego. Frustrado com o dia de trabalho, suado, cansado e nervoso, Diego entendeu que a única saída para manter a sua dignidade e aliviar um pouco do estresse do dia era caçar confusão. Queria brigar.
– Se o senhor não vai resolver, vou ter que ligar pra polícia. É o único jeito!
– Fique à vontade, senhor. Precisando, estamos à disposição!
“Síndico de merda”, pensou Diego, “debochado do caralho caramba”. Como era possível que um carro desconhecido ocupasse a sua vaga e ninguém soubesse o paradeiro do dono? Já próximo ao carro, investigando o interior com a lanterna do celular, como um ladrão prestes a quebrar o vidro e furtar uma mochila esquecida, Diego começou a chamar a atenção dos vizinhos e de outros funcionários do condomínio.
– Ei, você! Você não sabe de quem é esse carro? (disse Diego se voltando ao zelador)
– Fala, meu querido. Não vou estar sabendo te informar, não. (olá, gerúndio). Você já tentou com o síndico?
– Aquele merda não sabe de nada, assim como o vigia da portaria e, aparentemente, ninguém nesse condomínio.
– Situação difícil hein chefe? Boa sorte aí!
Um. Dois. Três. Três tentativas e nada. Era hora de chamar o looooongo braço da lei. Diego subiu para o seu apartamento para tomar uma água, tirar água do joelho, resgatar a dignidade que lhe restava e ligou pra polícia.
Informou que um carro – que não era o seu, que fique bem claro – estava estacionado na sua vaga e que ninguém do condomínio sabia quem era o dono. Informou a placa, modelo, cor, tudo mais. Ele queria a sua vaga de volta.
– Meu senhor, podemos consultar em nosso banco de dados e verificar se temos o registro do dono do veículo.
– Eu agradeceria muito!
[sons de teclas e barulho de outros atendentes ao fundo]
– Senhor Diego, acabo de localizar a proprietária. Vamos fazer contato com ela e pedir que retire o veículo, imediatamente. Caso a gente não consiga, mandaremos uma viatura.
– Muito obrigado! Muito obrigado mesmo!
A essa altura do campeonato, o suor de Diego já havia secado e somente o ódio encapsulado resistia em seu coração (sim, para falarmos de ódio, escolhemos um pouco de poesia).
Como uma criança que espera a chegada do Papai Noel, porém com os olhos cheios de sangue e o estado de espírito de um vulcão em erupção, Diego se dirigiu rapidamente ao elevador pensando “agora eu pego aquela filha da puta desgraçada”. Não deixaria de ver a cara daquela maldita invasora de vagas. Queria julga-la com os seus olhos e, se possível, recriminá-la com alguns dos seus verbetes favoritos do dicionário de ofensas.
Chegando à sua vaga, o carro seguia lá. Cinza, tranquilo, impassível. Sem sinal de proprietários. Alguns vizinhos, que já tinham ficado sabendo da treta pelo grupo de WhatsApp do condomínio, se acotovelavam nas janelas para acompanhar a batalha da noite. Diego, o vizinho indignado, versus, Fulana, a invasora de vagas. Melhor que jornal nacional.
Pouco tempo se passou até que Diego avistou uma silhueta saindo da portaria da torre seis, a que ficava ao lado da sua, e se dirigindo até ele. “Silhueta interessante”, pensou Diego (Ah, claro, esqueci de mencionar que Diego, além de suado e nervoso, estava solteiro).
Chegando próximo ao carro, Fulana, a invasora de vagas, gesticulava e emitia pequenas frases em uma voz serena e, estranhamente, atrativa: “ai meu Deus, me desculpe”; “nossa, que vergonha”; “não sei onde eu coloco a minha cara, desculpa mesmo, eu mudei hoje e me disseram que essa era a minha vaga”.
Diego, que estava inebriado pelo perfume doce da misteriosa invasora de vagas e se maravilhava com os longos cabelos ondulados que esvoaçavam a cada passo delicado daquela linda donzela (Diego era romântico e conservador em seus pensamentos), ouviu pouco do que estava sendo dito.
Observando toda a cena em silêncio, Diego viu Larissa (a invasora de vagas), uma jovem de trinta e poucos anos em um vestido leve e florido, desativar o alarme, entrar no carro e mover o veículo até a rua, já que outro carro estava parado na vaga que seria a dela e somente o Marcão – lembra? o vigia do dia – saberia dizer, talvez, de quem era o outro carro invasor (sim, isso acontece bastante nesse condomínio).
Após estacionar o carro na rua, Larissa voltou até Diego e mais uma vez se desculpou com sua bela voz:
– Senhor, me desculpe. Me confundi e acabei parando na sua vaga. Acho que meu carro vai precisar dormir na rua. Não vai acontecer novamente. Como posso recompensá-lo?
Diego, que não sabia se estava tendo um derrame ou se havia sido picado por uma aranha rara, cujo efeito do veneno é a paralisia imediata, levou mais alguns segundos até que a sua alma voltasse ao seu corpo. “Que mulher maravilhosa, meu Deus!”, pensou Diego. “Que cabelo, que voz, que corpo, que perfume”. “Foi você, Deus? Que mandou ela parar na minha vaga? Obrigado por isso”. Mas Diego precisava parar de pensar e falar alguma coisa. Larissa o olhava como a um animal exótico.
Foi, portanto, nesse momento, que Diego guardou o dicionário das ofensas e sacou o seu dicionário de cantadas baratas do bolso mental e mandou o que se tornaria a fala que marcaria o início daquele casamento vindouro de muitos anos (Larissa e Diego, juntos para sempre) e três filhos (Dora, Caetano e Luiz):
– Recompensa? Você pode jantar na minha casa. Moro logo ali, na torre três. Eu deixo você parar na minha vaga.
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